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Vereador comemora atraso no curso de medicina para jovens rurais e quilombolas

por Ayam Fonseca
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Por Vinicius Sobreira — Brasil de Fato

Desde o fim de setembro, o vereador Tadeu Calheiros (MDB), do Recife, abraçou uma luta contra o curso de graduação em medicina voltado para a população de áreas de reforma agrária. Viabilizado através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o curso cria uma turma extra de medicina, sem qualquer mudança no processo seletivo da graduação de medicina via Sisu. O curso extra será realizado no Campus Agreste (CAA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Caruaru.

O vereador Tadeu Calheiros (MDB) conseguiu, em 30 de setembro, que o juiz Ubiratan de Couto Maurício, da 9ª Vara da Justiça Federal no Recife, aceitasse o seu pedido de suspensão do edital nº 31/2025 da UFPE, que oferece 80 vagas para o curso de graduação em medicina. O parlamentar recifense alega que o público-alvo do edital é “extremamente seletivo” e afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais, que a seleção “tem trazido preocupação para todos os profissionais de saúde, comunidade acadêmica e estudantes que almejam uma vaga no curso de Medicina”.

A ação judicial foi apoiada pelo Conselho de Medicina de Pernambuco (Cremepe), pelo Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), pela Associação Médica de Pernambuco (Ampe), pela Academia Pernambucana de Medicina (APM). Num segundo vídeo, Tadeu Calheiros diz estar “na expectativa para a suspensão deste edital e que futuramente este concurso seja anulado”.

No entanto, o desembargador Fernando Braga, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) derrubou, no início de outubro, a liminar da 9ª Vara e o processo seletivo foi retomado. Numa segunda ação, o vereador conseguiu nova suspensão, também derrubada no TRF-5.

Atrasos e comemoração

Em meio ao vai e vem de liminares e derrubadas, Tadeu Calheiros comemorou o atraso no calendário do curso para os jovens rurais. “Temos algumas vitórias a celebrar. Após nossas ações, as provas foram adiadas do dia 12 de outubro para o dia 02 de novembro. A pretensão era de iniciar as turmas no dia 20 de outubro, mas foram adiadas para o dia 02 de dezembro. Isso nos dá tempo maior para que o assunto seja analisado na Justiça Federal e que consigamos a nulidade deste edital”, vislumbra o vereador em vídeo nas suas redes.

Antes, ele publicou uma nota em parceria com a Federação Médica Brasileira (FMB) dizendo que o curso do Pronera “estabelece privilégios indevidos no acesso à universidade” e que a suspensão do edital indica “que qualquer medida seja adotada (…) dentro do princípio da igualdade de oportunidades”. A graduação em questão é voltada para jovens camponeses e quilombolas, que vivem da agricultura familiar e de programas governamentais, muitos residentes em comunidades rurais sem atendimento médico regular. Para Calheiros, esses são “privilegiados” que provocam desigualdade de oportunidades.

Uma pesquisa conduzida pela Controladoria-Geral da União (CGU), em 2024, apontou que 73% das famílias rurais não conseguem sobreviver exclusivamente da produção dos seus lotes, sendo dependentes de outras fontes de renda, como aposentadorias, programas sociais como o Bolsa Família e outros trabalhos, além da roça. Outro estudo governamental, de 2022, indicava que a renda média per capita dos assentados rurais era inferior a um salário mínimo.

Formatura da primeira turma de Direito, por meio do Pronera (Foto: Wellington Lenon)

Médico e milionário

Tadeu Calheiros é vereador em segundo mandato, tendo sido eleito em 2020 e reeleito em 2024. Médico formado na Universidade de Pernambuco (UPE) – universidade estadual pública – , especializou-se em oncologia e hoje é detentor de um patrimônio que chega à casa do milhão. Segundo os dados públicos informados pelo próprio na sua declaração de bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na eleição de 2024 o vereador possuía R$ 1,46 milhão em bens declarados. A lista traz imóveis num bairro nobre do Recife e na praia de Tamandaré, litoral sul de Pernambuco, além de três veículos, aplicações e depósitos bancários.

Além dos seus vencimentos como profissional de medicina, Tadeu Calheiros recebe dos cofres públicos um pagamento mensal de R$ 37,8 mil por ser vereador. O valor engloba um salário bruto de R$ 23,4 mil, ticket alimentação de R$ 3 mil, auxílio-combustível de R$ 2,3 mil e uma verba indenizatória mensal de R$ 9 mil. Sua esposa também é médica e ao menos uma de suas filhas é profissional de medicina. Ele classifica a turma extra para formar 80 camponeses em medicina como “absurdo” e “bizarro”. “Reafirmo meu compromisso de seguir lutando até a instância que for necessária”, garante.

O deputado federal Mendonça Filho (União Brasil), ex-ministro da Educação no governo Temer, se somou ao vereador nesse pleito. “Estamos mobilizados em favor de uma educação que gere oportunidades e igualdade para todos, não para grupos específicos”, declarou o deputado em vídeo. O deputado federal, que possui um patrimônio de R$ 2,5 milhões, recebe como congressista R$ 46,3 mil mensais.

O Brasil de Fato buscou contato com o vereador por e-mail, telefone e por mensagem via Instagram, mas não obtivemos resposta. Também enviamos e-mail para o deputado Mendonça Filho e ainda não houve resposta.

Questão de classe

Em entrevista ao Brasil de Fato e ao programa Realidades, o diretor do Centro Acadêmico do Agreste (CAA-UFPE), professor Dilson Cavalcanti, avaliou que as queixas são fruto de um desejo de manutenção de privilégios. “O Brasil é construído sobre uma assimetria histórica no acesso a algumas formações consideradas exclusivas da elite econômica, como no caso da medicina. Por isso, políticas como o Pronera são fundamentais para as pessoas que não nasceram em berço de ouro também tenham oportunidade”, disse.

Cavalcanti também criticou a desinformação usada por políticos neste tema. “O público-alvo é definido por lei federal. As pessoas não se dão mais ao trabalho de buscar saber, compreender os fatos, buscar informações. É uma patologia do nosso tempo”, completou.

Em visita a Caruaru, ainda em setembro, o ex-ministro Márcio Macêdo (PT) também foi questionado sobre o tema. “O Pronera tem turmas de outros cursos. Por que esses podem, mas medicina não? Medicina é uma reserva de mercado para as elites? Vamos virar essa página para que esse curso possa atender aos filhos do povo e formar profissionais comprometidos em atender bem a nossa gente”, afirmou Macêdo.

Os ministros Márcio Macêdo e Wolney Queiroz e a deputada Rosa Amorim em visita ao CAA-UFPE, em Caruaru (Foto: Ascom SGPR / Governo Federal)

A deputada estadual Rosa Amorim (PT), nascida num assentamento da reforma agrária, destacou o déficit de médicos nas zonas rurais. “É difícil encontrar profissionais com disponibilidade de atender no interior do estado. Agora serão 80 novos médicos ocupando consultórios nos rincões do nosso país”, comemorou. “Me anima a possibilidade de ver filhos de agricultores num curso que historicamente foi destinado às elites”, completa.

Seis cursos do Pronera foram ou estão sendo realizados em Pernambuco este ano. Dois deles são em parceria com a UFPE: um de alfabetização para camponeses adultos e uma formação para educadores do campo. Outros dois cursos em parceria com a UPE: a graduação de licenciatura em geografia e uma especialização em gestão e práticas em educação no campo. Por fim, duas formações em parceria com a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf): especialização em educação do campo e um mestrado em extensão rural.

No Pronera são comuns cursos nas áreas de agronomia, agroecologia, desenvolvimento agrário, veterinária, pedagogia e administração voltadas para a vida rural. Esta é a primeira vez que o Pronera abre seleção para um curso de medicina.

UFPE se defende

O reitor da UFPE, Alfredo Gomes, afirma que todo o processo seletivo está amparado pela lei. “A iniciativa é financiada pelo Pronera. A turma extra de medicina em Caruaru, para pessoas assentadas da reforma agrária e beneficiárias do crédito rural, é extremamente importante para a democratização do ensino superior e para a formação de médicos dedicados à população rural. Todos conhecem as dificuldades de atendimento nessas áreas”, pontua Gomes.

O reitor da UFPE, Alfredo Gomes (ao microfone), aponta que “as universidades públicas têm sido atacadas com preconceito e desinformação” (Foto: Widma Sandrelly/UFPE)

A UFPE argumenta que os cursos são integralmente financiados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, portanto, são uma política pública direcionada à população de áreas de reforma agrária; que os critérios de seleção são adequados ao perfil dos candidatos e já utilizados em outros processos seletivos do Pronera; e que o programa é uma ação já reconhecida pelo STF como legítima para reduzir as desigualdades e promover a educação no campo. “As universidades públicas têm sido atacadas com preconceito e desinformação por políticos e aspirantes. Mas a UFPE é gigante e não vai se intimidar e nem se desviar de dar formação de qualidade a todos”, completa o reitor.

Processo seletivo

O edital elenca como candidatos aptos a participar do processo seletivo para a graduação em medicina a população quilombola, residentes em assentamentos reconhecidos ou criados pelo Incra, população beneficiária do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), acampados e acampadas cadastradas pelo Incra, jovens e adultos de famílias beneficiadas do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNFC), educandos egressos dos cursos de especialização promovidos pelo Incra e educadores que exerçam atividades educacionais voltadas para esta população beneficiária.

A seleção tem duas etapas: uma redação realizada presencialmente, com temáticas relacionadas à realidade da vida no campo; e uma análise do histórico escolar no ensino médio, com foco nas disciplinas de língua portuguesa, biologia e química. Dentro das vagas também há cotas para candidatos vindos de escolas públicas, de baixa renda, pessoas pretas e pardas e pessoas com deficiência.

O que é o Pronera?

As desigualdades socioeconômicas que marcam historicamente a população camponesa no Brasil, especialmente na região Nordeste, somadas às particularidades na rotina de trabalho no campo, foram alguns dos fatores que levaram o governo federal a dar início ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), ainda em 1998, sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O objetivo é reduzir as desigualdades no acesso à educação e democratizar os benefícios que a formação universitária pode trazer para comunidades rurais.

Ao longo de 27 anos, o Pronera já formou mais de 200 mil estudantes. As vagas dos cursos – que vão da educação básica, passando pela tecnóloga, superior e pós-graduação – são voltadas para jovens e adultos residentes em áreas de reforma agrária. As universidades públicas, vinculadas ao Ministério da Educação, entram como parceiras, recebendo recursos e cedendo espaços físicos e professores aos cursos de graduação e pós-graduação.

No manual do programa, o Incra justifica que “as desigualdades sociais e econômicas persistem no campo brasileiro, limitando o desenvolvimento equitativo das comunidades rurais. (…) A colonização, escravidão, concentração de terras, racismo e desigualdade de gênero criaram raízes profundas que sustentam um cenário de exclusão socioeconômica. (…) O Pronera se posiciona no enfrentamento dessa realidade, proporcionando acesso à educação pública, gratuita e de qualidade para populações do campo, estabelecendo caminhos para a superação das desigualdades, estabelecendo um novo paradigma para o campo brasileiro”.

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