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A democracia funda a sua legitimidade na escolha majoritária do governo em eleições livres e na proteção do indivíduo e dos seus direitos constitucionais. O golpe de Estado que esteve em julgamento pretendia atacar os dois – impedir a mudança pacífica do poder e acabar com a liberdade individual. Tudo feito em nome de uma certa “maioria nacional”, que se considera tocada pelo divino e herdeira da genuína cultura brasileira. As Forças Armadas assumiriam então, de novo, esse papel histórico de instrumento ao serviço do “povo puro e autêntico”, que se rebela contra o “não povo” que conspurca a identidade nacional. Nesse “não povo” cabe tudo – o comunista, o ateu, o emigrante, o negro, o pobre. Sobretudo o pobre, esse maldito povo pobre que não deixa o país avançar. Na história brasileira, o golpe de Estado não é novidade, novidade foi o seu julgamento.
Seja como for, agora que a sentença foi pronunciada, é tempo de reflexão e, atrevo-me a dizer, de contenção. Confesso que me incomoda profundamente a euforia que para aí vejo a propósito das penas de prisão. O julgamento pode ser motivo de satisfação, não a prisão. O Brasil procurou a justiça, não a vingança. Pela primeira vez, o golpe de Estado, a violência política e os militares envolvidos foram julgados por um tribunal, o que nos deve merecer os maiores encómios. Mas julgo que todos podemos concordar que seria melhor que não tivesse acontecido. Julgo que todos podemos concordar que seria melhor que o anterior presidente tivesse passado a faixa ao novo presidente e tivesse reconhecido a derrota. Isso sim, teria sido bom para consolidação democrática da República. Não tendo sido assim, a resposta encontrada pelo Estado foi a melhor – procurar a justiça dos tribunais. A justiça, não o ressentimento. A justiça, não o ódio.
O momento político depois da sentença é pois, por várias razões, um momento histórico e solene que deveria ser poupado a títulos de jornais exprimindo satisfação com a prisão, seja de quem for. A prisão é sempre um acontecimento que se deve lamentar. Para quem ama a liberdade individual a prisão é sempre um último recurso. Não, não gosto de ler intelectuais que exprimem contentamento com a prisão do antigo presidente e se limitam a escarnecer o personagem, escrevendo que não gostam de falar dele ao domingo, como se, fazendo-o, estivessem a cometer um pecado. Esse comportamento enfraquece a dimensão simbólica do momento – que deve ser recebido com gravidade, não com pilhérias de mau gosto. Para além disso, nunca me agradaram aqueles que batem em quem já está no chão e não vejo nisso nenhuma valentia – vejo oportunismo. A vitória do Brasil foi o julgamento, não a prisão. Nunca me regozijei com a prisão de ninguém e não é agora que vou começar. Pela minha parte este é um momento que deve ser vivido com sobriedade. Uma certa reserva institucional será apropriada. Esse é o meu sentimento.