Por Cleber Lourenço
A Câmara dos Deputados tem repetido uma prática que virou rotina sob a presidência de Hugo Motta (Republicanos-PB): a divulgação de textos e relatórios de projetos de lei, medidas provisórias e propostas de emenda constitucional às vésperas das votações, muitas vezes com mudanças significativas e sem tempo hábil para análise técnica. O método, herdado de Arthur Lira (PP-AL), compromete o papel deliberativo da Casa e vem sendo criticado por parlamentares, técnicos e servidores.
Nos bastidores, a explicação oficial é a busca por eficiência e agilidade. Mas deputados e assessores afirmam que, na prática, trata-se de uma estratégia para concentrar poder nas mãos da Mesa Diretora, reduzir a interferência das comissões temáticas e evitar reações políticas e sociais antes das votações. A liberação de textos em cima da hora virou um instrumento de controle da agenda e de blindagem de acordos políticos.
O problema, segundo técnicos legislativos, é que essa dinâmica prejudica o exame de constitucionalidade e de impacto financeiro, sobretudo em propostas de grande complexidade. A liberação tardia também afeta o trabalho de consultorias e assessorias técnicas, que ficam sem tempo para revisar as alterações ou identificar inconsistências nos dispositivos.
Entre os casos mais recentes estão a MP 1303, que trata da compensação do IOF; o PL da Anistia (2162/2023); a PEC das Prerrogativas; o projeto de isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil e o PL 2628/2022, que regula a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Em todos, os textos finais foram disponibilizados poucas horas antes das discussões em plenário, o que inviabilizou um debate qualificado.
No caso da MP 1303, o texto só foi fechado na véspera do último dia de validade da medida, quando a Câmara precisou correr para deliberar antes que ela perdesse eficácia. O parecer trouxe alterações sensíveis em temas como a tributação de fundos e a taxação de apostas, o que gerou desconforto até entre aliados. Já o PL da Anistia teve seu texto publicado horas antes da votação do requerimento de urgência, pegando de surpresa até membros da base governista. Na PEC das Prerrogativas, a redação foi modificada durante a madrugada, com mudanças negociadas diretamente entre Motta e líderes do Centrão.
A crítica é compartilhada dentro e fora do Parlamento. Ao ICL Notícias, o deputado Henrique Vieira (PSOL-RJ) avaliou que a prática prejudica o exercício da função legislativa:
“Quando os projetos são liberados apenas perto da votação, se compromete bastante a atividade parlamentar, porque não temos tempo de estudar os projetos, a assessoria técnica fica prejudicada e nossa capacidade de julgar e de votar também. Portanto, é um empecilho à atividade parlamentar a pauta ser publicada tão perto do momento da votação.”
Henrique Vieira (PSOL-RJ)
Servidores da Câmara afirmam que a tática é usada inclusive para evitar mobilizações contrárias a pautas sensíveis. Com o texto disponível por pouco tempo, grupos da sociedade civil, organizações e até parlamentares não conseguem reagir ou propor emendas. O resultado, segundo um assessor ouvido pela reportagem, é “um Parlamento que aprova sem ler e decide sem debater”.
O regime de urgência previsto no Regimento Interno, que deveria ser exceção, virou regra. Ele permite suprimir prazos e levar projetos diretamente ao plenário, sem análise aprofundada nas comissões. Essa sistemática, segundo analistas de governança legislativa, distorce o processo democrático, enfraquece o controle público e amplia o poder da presidência sobre o conteúdo e o ritmo das deliberações.
A gestão de Motta repete e aprofunda o modelo de comando de Arthur Lira: controlar o tempo é controlar o processo. Ao divulgar textos no limite do prazo, a Câmara garante que apenas um grupo restrito participe das decisões, mantendo o restante do Parlamento no escuro. Essa prática tem transformado o debate legislativo em mera formalidade, minando o papel representativo da Casa e comprometendo a transparência do processo legislativo.