Um jogo que fez mais divertidas as tardes de crianças e adolescentes na era pré smartphones e redes sociais era o Branco Imobiliário. Nele, os jogadores podiam comprar bairros e ruas inteiras de São Paulo. Lembro de uma tarde em que fiquei muito rica comprando nada menos que a Faria Lima e Higienópolis. Brincadeiras à parte, a Prefeitura de São Paulo tirou o Banco Imobiliário do tabuleiro e sancionou uma lei que autoriza a venda ou concessão de algumas áreas públicas, incluindo ruas e travessas, para a iniciativa privada, mostrando que todo jogo pode ser um treino radical de capitalismo, ensinando que tudo pode estar à venda.
Em tese, a Lei sancionada pelo Prefeito Ricardo Nunes visa vender áreas que perderam seu uso público devido à urbanização, transformando-as em bens de domínio e gerando recursos para a cidade, que podem ser destinados ao Fundo de Habitação Popular. A lei gerou críticas de arquitetos, urbanistas e, obviamente, da população que é sempre a última a ser consultada (quando é!) sobre qualquer assunto que lhes diga direito.
O Ministério Público solicitou a anulação do processo legislativo e novas discussões públicas. No entanto, a ideia está na roda e o capital já esfrega as mãos de tanta cobiça. Nada mais forte do que o concreto quando quer subir e lucrar.
Pesquisadores alertam com justiça, que uma rua é muito mais que sua utilidade como via pública. Ruas são a identidade de uma cidade, são memória de uma população e guardiãs de histórias do país. Sem contar o caráter de convivência que uma rua possui.
No entanto, cada dia que passa os logradouros públicos estão mais para campos de batalhas onde os dramas do cotidiano se desenrolam e onde os especuladores enxergam apenas cifrões de novos empreendimentos e nenhuma bola, bicicleta ou caminhante.
Cada rua vendida é uma obrigação a menos do poder público de mantê-la. Cada rua vendida é a entrega da cidade para mãos que desejam tudo, menos preservar o traçado de uma região, a geografia de um lugar. A discussão que São Paulo inaugura tem tudo para virar moda em um país que nunca se preocupou com a história e muito menos com a memória seja lá do que for. Isso sem falar no potencial explosivo de aporofobia, ou seja, a aversão a pobres que a multiplicação de ruas privadas pode causar.
Escritores do século 19 criaram a figura do “flanêur”, ou seja, aquele que perambula pela cidade apreciando e sentindo cada praça, cada rua, a população. Sobre essa figura, Charles Baudelaire disse um dia “A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito”.
Todavia foi outro intelectual, Walter Benjamim, quem parece ter visto na bola de cristal o futuro quando disse que a figura do “flanêur” acabou quando venceu o capitalismo de consumo. Bingo!
Qual a dúvida de que essa moda vai pegar e não apenas em São Paulo? Qual a dúvida que será a especulação imobiliária que cantará a cantiga de vitória final? “Se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de brilhantes … para quem puder pagar”.