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A reforma que chega fantasiada
Na noite de 24 de outubro de 2025, a tão prometida reforma administrativa enfim ganhou corpo oficial. A PEC 38/2025 foi protocolada pelo deputado Zé Trovão (PL-SC), com 171 assinaturas, o mínimo necessário para iniciar sua tramitação. Era o desfecho tardio do Grupo de Trabalho (GT) criado em maio, sob a coordenação do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que prometia um texto técnico, federativo e transparente até julho.
A PEC 38/2025, apresentada por Zé Trovão (PL-SC), surge como herdeira tardia desse GT que perdeu o rumo.
O coordenador Pedro Paulo afirmou:
“Outro ponto que eu tenho dito também em todas as audiências é que o objetivo da reforma administrativa não é fazer ajuste fiscal.”
Já Zé Trovão reforçou:
“Não existe PEC 32 nessa discussão. Existe a discussão de todo o conhecimento geral e nacional para a construção de algo novo, e algo que realmente atenda, como eu disse, o anseio geral, mas, em especial, primeiro, o da sociedade civil.”.
O contraste é inevitável. O que foi vendido como uma reforma técnica e inovadora chega com o mesmo DNA da velha PEC 32/2020 de Paulo Guedes: rigidez fiscal e frases de efeito embaladas em retórica.
Fiscal e federativa: o doce da responsabilidade, o travo da centralização
Pedro Paulo foi enfático durante os debates:
“O objetivo da reforma administrativa não é fazer ajuste fiscal.” E seguiu: “Nós não traçaremos como objetivo da reforma administrativa a redução da despesa primária em xis por cento do PIB ou produção de superávit.”.
Na teoria, parecia um pacto de bom senso: modernizar sem transformar a reforma em um cavalo de Troia do arrocho. Por outro lado, porém, a PEC 38/2025 faz justamente o oposto.
O novo artigo 28-A impõe aos Estados e ao Distrito Federal um teto de gastos semelhante ao da União, limitado à inflação, independentemente das realidades locais. Já o artigo 22 concede à União competência para definir normas gerais sobre gestão de pessoas, governança e controle, ampliando o poder federal sobre temas antes de competência compartilhada.
O resultado é uma contradição cristalina entre discurso e entrega. A proposta que prometia descentralizar transforma a federação em um modelo de linha de montagem, no qual municípios e Estados passam a operar com a mesma lógica fiscal, sem calibragem regional. O argumento do “equilíbrio” vira instrumento de controle.
O travo federativo é amargo: municípios pequenos, com arrecadação limitada e elevado gasto proporcional em pessoal, terão de se submeter à mesma regra de contenção de despesa que metrópoles com capacidade fiscal muito maior. A “responsabilidade” prometida se converte em rigidez, e o que era um pacto federativo se transforma numa dieta única com cardápio decidido em Brasília.
Para os padrinhos da nova reforma administrativa, modernizar é sinônimo de pasteurizar os entes federados.
Combate a privilégios: o discurso moral, o efeito colateral
Em outro momento, Pedro Paulo procurou se equilibrar entre o discurso de eficiência e o de valorização do funcionalismo:
“Nós não vamos vilanizar o servidor, mas também não vamos vitimizá-lo; vamos tratar o servidor como um profissional que escolheu como carreira dedicar-se ao setor público, servir ao público.”.
A PEC 38/2025 autoriza o ingresso direto em níveis intermediários e superiores da carreira (até 5% das vagas), rompendo a isonomia entre candidatos e abrindo atalhos elitizados no serviço público.
Mais grave: a proposta silencia sobre os privilégios políticos. O resultado é uma inversão de prioridades: enquanto o servidor que aplica prova ou atende na ponta é cobrado por desempenho, o agente político que decide verbas e nomeações permanece blindado.
Governança digital e eficiência: a promessa 5G com execução 2G
Pedro Paulo teoricamente defendia uma visão mais estrutural:
“A reforma administrativa tem que ter a capacidade de prover elementos, marcos regulatórios, para que o Estado funcione melhor, independentemente do seu tamanho.”
Zé Trovão propagava a ideia da modernização:
“A reforma busca modernizar o Estado, que é precário e obsoleto, para que ele entregue com eficiência.”.
Ambos vendiam um futuro digitalizado, eficiente, 5G. Mas o texto da PEC entrega um sinal intermitente e de baixa potência.
Grande parte do conteúdo sobre “governo digital” e “gestão eficiente” repete pontos já previstos na Lei 14.129/2021, que instituiu o Governo Digital. Nada de novo, exceto um detalhe: a condicionalidade. A PEC atrela bônus e progressões de servidores ao cumprimento de metas digitais e de governança, sem prever orçamento, infraestrutura ou treinamento.
Caso aprovada, o servidor passa a ser responsabilizado por metas que dependem de políticas públicas e de investimentos que não controla. Falhas de conectividade, ausência de sistemas integrados ou falta de equipamentos podem comprometer o desempenho individual, gerando penalizações.
A ironia: o discurso é de “inovação”, mas o efeito é de controle.
Querem governo digital sem banda larga institucional e com os servidores trabalhando em modo presencial.
Em vez de fortalecer capacidades administrativas, o texto transforma a precariedade tecnológica em critério de punição. A digitalização prometida não moderniza, burocratiza.
O discurso moral, o efeito colateral e o sumiço dos coautores
Pedro Paulo também prometeu acabar com privilégios e valorizar o mérito e, enquanto a retórica moral se espalhava, a coesão política desmoronava. Doze deputados retiraram suas assinaturas da PEC 38/2025 após a sua formalização:
Rafael Prudente (MDB/DF); Murilo Galdino (Republicanos/PB); Fátima Pelaes (Republicanos/AP); Duda Ramos (MDB/RR); Emidinho Madeira (PL/MG); Pastor Diniz (União/RR); Zé Haroldo Cathedral (PSD/RR); Helena Lima (MDB/RR); Marx Beltrão (PP/AL); Alexandre Guimarães (MDB/TO); Renilce Nicodemos (MDB/PA); e Henderson Pinto (MDB/PA).
No Congresso, é comum, infelizmente, que parlamentares assinem coletivamente propostas sem grande critério, o gesto simbólico que ajuda a “bater o número”. Mas, quando o texto finalmente vem à luz e as assinaturas se tornam públicas, a política começa a sentir o peso da exposição. As retiradas, com justificativas diversas, indicam fragilidade e desconforto entre os próprios autores.
Politicamente, é um movimento revelador. Mostra que transparência e pressão social ainda são os melhores antídotos contra reformas opacas. Quando a luz incide sobre o texto, as sombras começam a se mover. E, no caso da PEC 38/2025, muitos preferiram “não aparecer na foto”.
O GT da Reforma Administrativa prometia doces: eficiência, digitalização, responsabilidade, mas entrega travessuras: rigidez fiscal, centralização e uma reforma que já nasce rachada. Entre promessas doces e entregas travessas, a PEC 38/2025 revela o truque mais antigo de Brasília: mudar tudo para que tudo continue igual.