Por Heloisa Villela
O Projeto Antifacção, principal aposta do governo Lula (PT) para reagir à crise de imagem na segurança pública, chegou ao Congresso em meio à disputa com a oposição, que tenta emplacar mudanças na Lei Antiterrorismo para enquadrar ações de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) em atos terroristas.
Enquanto o texto do governo busca aprimorar o combate ao crime organizado criando o tipo penal de organização criminosa qualificada, aumentando penas e instituindo um Banco Nacional de Organizações Criminosas, a proposta rival ganhou força após a operação contra o CV nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que resultou em 121 mortos.
A disputa se acirrou com a escolha de Guilherme Derrite (PP-SP), secretário de Segurança Pública do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), para relatar o projeto. Derrite se licenciou do cargo em São Paulo para reassumir o mandato de deputado federal e conduzir a relatoria, enquanto o secretário-executivo Osvaldo Nico Gonçalves responde interinamente pela pasta.
Em entrevista ao ICL Notícias, o secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, criticou a condução das discussões no Congresso e disse que o texto original, elaborado ao longo de um ano por um grupo de trabalho com universidades, Ministérios Públicos e secretarias estaduais, foi “rasgado” e substituído por uma versão que “banaliza a noção de terrorismo” e “enfraquece o combate ao crime organizado”. Para ele, a pressa na votação e a politização do tema “colocam em risco uma política de Estado”.
Confira a entrevista com Mário Sarrubbo, secretário nacional de Segurança Pública
ICL Notícias- Estamos em um momento complicado, mas decisivo. A discussão dessa lei é fundamental há décadas.
Mário Sarrubbo: Sim, superimportante. E o que mais preocupa é que esse texto começou a ser construído em agosto do ano passado. Eu montei um grupo de trabalho com profissionais indicados pelos conselhos de comandantes de polícias militares, chefes de polícia civil, secretários de segurança, universidades, sociedade civil, Ministério Público e procuradores-gerais. A gente debateu muito esse projeto. Ele começou em agosto do ano passado e, no começo deste ano, já tínhamos um texto praticamente pronto. Portanto, não foi feito a toque de caixa.
Aí o projeto é distribuído no Congresso e simplesmente rasgam, jogam fora um texto que reformava a Lei das Organizações Criminosas, a Lei de Execução Penal e artigos do Código Penal e do Código de Processo Penal. Esse projeto, pura e simplesmente, virou uma reforma da Lei de Terrorismo.
Peguei um avião de Brasília para São Paulo na sexta-feira; o relator foi nomeado e, meia hora depois, já tinha um relatório. Antes de pousar, o relatório estava pronto. Toque de caixa, né? A gente precisa dialogar. O que eu estou pedindo é diálogo, porque tem muita coisa ali que precisa ser mexida.
Eu queria entrar em um ponto específico: a mudança que diz que a Polícia Federal só vai agir se for acionada pela autoridade local.
Ele [o texto] tem um parágrafo único que diz o seguinte: “Na forma do inciso primeiro do parágrafo primeiro do 144 da Constituição, poderá o Ministério da Justiça e Segurança Pública, mediante provocação do governador, determinar a atuação conjunta ou coordenada das forças policiais federal e estaduais.” Quer dizer, poderá o Ministério da Justiça autorizar.
Tinha uma lei que previa que, sendo o crime interestadual, envolvendo mais de um estado, a Polícia Federal podia atuar sozinha ou em integração com os estados. Agora ele diz que só se o governador pedir.
Quer dizer, qual é? Quando o mundo sabe que nós estamos precisando integrar, ele põe uma condicionante dessas? Porque aí você fica imaginando: o governador A, que é politicamente contrário, não vai pedir a Polícia Federal; o B vai. Como é que vai fazer?
A população vai ficar à mercê disso. E quando a gente tem hoje as forças-tarefas trabalhando integradas com os estados, com os Ministérios Públicos, com as polícias, aí nós vamos precisar pedir uma autorização para cada governador? Não tem cabimento.
E como as ações dessas organizações são interestaduais, se cada governador agir de forma isolada — uns enfrentando e outros não —, isso não compromete a possibilidade de uma resposta coordenada no país?
Exatamente. Se nós tivéssemos a PEC da Segurança Pública valendo lá atrás, quando as facções começaram no Rio e em São Paulo, talvez o crime organizado não tivesse crescido como cresceu. Porque a gente ficou trabalhando isoladamente, cada estado fazendo sua política pública, e São Paulo e Rio negando que tinham crime organizado. Isso causou o quê? O crime organizado está hoje no Brasil inteiro, ou melhor, está até fora do Brasil.
No fundo, essa falta de integração fez o crime organizado. Então, nós precisamos integrar, e aí ele ainda põe um empecilho a essa integração. É muito complicado.
Como é que vai haver esse debate, esse diálogo com o Congresso? Já há uma força-tarefa para isso?
Nós estamos absolutamente à disposição para o diálogo. Eu tenho dito que queremos dialogar. O que eu peço é que o projeto não seja votado de uma hora para outra. Não é possível que um tema tão importante tenha um relatório na sexta e na terça já seja aprovado. A gente comete um equívoco muito grande quando trabalha dessa forma. É um texto que precisa de diálogo, não pode ser assim.
E há alguma abertura no Congresso para isso?
Por enquanto, nada. O que eu ouvi hoje foi o secretário dizendo que precisa ser votado rápido porque “a população quer”. Ele disse que está aberto ao diálogo, mas que precisa ser votado rápido. Agora, eu fico aqui perguntando: esperou-se tanto tempo para isso, e agora, de uma hora para outra, vai votar?
É um texto desconhecido, que não passou por nenhum processo de discussão com a sociedade, não é?
Exatamente. Ele não passou por ninguém. A sociedade civil não discutiu se quer que isso seja considerado terrorismo. Juntaram um projeto que reformava a Lei das Organizações Criminosas e ele não mexe mais na Lei das Organizações Criminosas.
Colocaram uma série de hipóteses equiparando ações de facções a terrorismo. E o pior: vários dos mecanismos que nós tínhamos, principalmente as medidas cautelares, intervenção em pessoa jurídica, criação de pessoa jurídica fictícia, ele separa e diz que é só para esses casos.
Todas as outras organizações criminosas que não se enquadram nesse conceito de “equiparação a terrorismo” ficam sem essas cautelares. Portanto, ele [o texto] limita a possibilidade de o Estado aplicar mecanismos modernos só para um tipo de facção.
Ele olha para o andar de baixo, na verdade. Então, vamos prender todo mundo, meter 40 anos. E para aquelas organizações criminosas que trabalham, por exemplo, com golpes por telefone ou crimes eletrônicos, esses ficam no normal. Não podem receber nenhuma medida cautelar específica. Quer dizer, faltou enxergar o todo.
Quais são os grupos que o texto define que podem receber essas medidas cautelares?
É um rol enorme. A pena passa a ser de 20 a 40 anos. E ele diz que incorrem nas mesmas penas aqueles que praticarem ações paramilitares, milicianas, que usem violência ou grave ameaça, armas de fogo, explosivos, gás tóxico, que restrinjam a livre circulação de pessoas, que imponham controle social mediante violência, sabotem aeronaves, portos, aeroportos…
Quer dizer, ele está focando nas facções que dominam território. Esse foco limita a ação ao pessoal que está lá na base, na comunidade. O chefe da quadrilha, o cara que atua no mercado financeiro, esse fica de fora das medidas cautelares.
Ele está, na verdade, colocando tudo muito próximo da base, falando muito em violência, e deixando de olhar para o andar de cima. Está limitando a aplicação dessas cautelares a um tipo específico de facção.
E não é só esse rol. Se você pegar cinco ou seis pessoas que se organizam para dar golpes no mercado, esses não vão ter infiltração, não vão ter nada. Porque ele está simplesmente reformando a Lei de Terrorismo, e não mais a Lei das Organizações Criminosas como um todo.
O nosso projeto pegava a lei e trazia a facção como uma forma qualificada de organização criminosa. O nosso projeto apenava mais severamente as lideranças, e não aquela massa de soldadinhos, jovens de 17, 18 anos, que nascem e crescem nesse contexto e são pegos pela primeira vez com um fuzil. Agora todos pegam 20 a 40 anos, a mesma pena do chefe. É muito complicado.
ICL Notícias: É por isso que o senhor diz que o projeto banaliza a noção de terrorismo?
Sim, porque ele equipara esse tipo de atividade a terrorismo. Ele diz que não é terrorismo, mas é “equiparado”. Se você lembrar, a Constituição de 1988 estabeleceu um rol de crimes hediondos. Aí começamos a banalizar: “Ah, tem que ser homicídio qualificado também, porque é muito grave”; “ah, tem que ser tráfico também”. E diminuiu o homicídio qualificado? Diminuiu o tráfico? Não.
E, agora, está se fazendo o mesmo com o terrorismo. Tudo vira terrorismo. Isso vulnerabiliza o país no contexto internacional, e não acrescenta nada em termos de combate ao crime organizado.
Além disso, ele tirou um mecanismo que a gente tinha colocado: o perdimento de bens, mesmo que o inquérito fosse arquivado ou a ação anulada. Isso servia para evitar que grandes operações perdessem o efeito por anulação de processo ou morte do réu.
A gente tinha colocado no nosso projeto essa medida com efeitos civis, desde que o investigado não comprovasse a origem lícita do bem. No relatório, isso simplesmente não entrou.
E quanto à escolha do relator, há também uma preocupação política, não?
Pois é. Um tema que tem que ser tratado como questão de Estado cai num embate político. Eu fico pensando: precisava ser o secretário de Segurança de São Paulo o relator desse projeto? Não havia nenhum deputado para isso? Foi um movimento político, infelizmente, num tema que exige equilíbrio e ser tratado como política de Estado.
Existe um projeto em andamento no Rio Grande do Norte, em parceria com o Ministério e a USP. Esse modelo está sendo tratado como uma referência para outras regiões?
É um modelo de política pública, um projeto piloto num território pequeno, que era dominado por uma grande facção. Foi feito um trabalho de mais de seis meses de inteligência para identificar o ciclo econômico, o domínio, quem eram os líderes.
A ação policial já aconteceu. Nenhuma morte, mais de 30 presos. Agora a polícia está lá todo dia, e entramos na fase dos serviços: acesso à justiça e mediação de conflitos. Semana que vem vou lá para ver o que o Estado e o município vão assumir. Queremos, em dezembro, anunciar o “antes e depois”.
Já recebi mensagens de moradores dizendo: “Antes a gente ouvia tiros, agora ouve os pássaros.” É aquele ciclo completo: não é entrar e sair, é entrar e ficar. O Estado entra para substituir o ciclo econômico do crime pelo ciclo econômico do Estado. Essa é a ideia.
Esse modelo deverá passar por adaptações em cada território, considerando as diferenças de realidade entre os estados?
Sem dúvida alguma. Claro que precisa de adaptações, porque cada território é diferente. Não dá para imaginar que esse modelo vá, por exemplo, para a Penha, no Rio de Janeiro, amanhã. É uma comunidade muito maior, um território muito mais complexo.
Mas a gente quer deixar um modelo como uma política pública que possa ser aplicada de acordo com as circunstâncias de cada local. Porque quando a gente pensa nesse tipo de coisa, normalmente pensa no Rio de Janeiro, mas isso acontece em vários estados do Brasil.
Com essa política pública, podemos retomar áreas dominadas e, mais do que isso, impedir que novas sejam tomadas pelas facções, entendendo qual é a lógica dessa ocupação de territórios. Foi a omissão que levou ao estágio atual do Rio e de tantos outros estados.
Quais outros pontos dessa primeira versão do projeto, relatado por Derrite, o senhor considera mais preocupantes?
Olha, vários, né? O projeto trabalha, por exemplo, todas as medidas patrimoniais que antes focavam no asfixiamento econômico das facções e que também abrangiam outras formas de organização criminosa. Ele restringe tudo isso só para esses casos que ele chama de “terroristas”.
Como ele fez uma reforma da Lei de Terrorismo e trouxe para dentro dela as novidades que nós tínhamos proposto, como a intervenção em pessoa jurídica, por exemplo, acabou restringindo essas medidas apenas a esses casos. Então, qualquer outro tipo de organização criminosa fica fora dessas cautelares.
Com a pressa, criaram-se tipos penais redundantes, sem encadeamento com o Código Penal. Por exemplo: ele cria uma nova modalidade de homicídio qualificado que entra em conflito com outra já existente. Vai ficar duplicado.
Em outro trecho, ele menciona crimes praticados “no âmbito dessas atividades” — furto, roubo, homicídio —, mas esquece de incluir extorsão e extorsão mediante sequestro, que são crimes muito mais comuns em facções.
Além disso, quando fala de lesões corporais, dá uma pena alta para qualquer conduta que cause lesão, mas não especifica se é leve, grave, gravíssima ou seguida de morte. Sai completamente da técnica do Código Penal, que distingue esses graus.
E, no fundo, ele banaliza o terrorismo. O terrorismo é sempre uma exceção em qualquer legislação, mas nesse texto está absolutamente banalizado. Tudo virou terrorismo, com penas altíssimas, e o pior: todo mundo no mesmo balaio.
Boa parte da juventude das comunidades, que nasceu e cresceu nesse contexto e muitas vezes está começando a se envolver, vai sair com 20 anos de cadeia — a mesma pena do líder da quadrilha. É preciso distinguir quem é o líder e quem é o recrutado.