Casa Economia‘Querem tomar da gente’: demolições forçam saída do Moinho sem moradias prometidas

‘Querem tomar da gente’: demolições forçam saída do Moinho sem moradias prometidas

por Gabriel Anjos
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Por Catarina Duarte – Ponte Jornalismo

Joseilda Juvenal da Silva sobe com destreza as escadas de metal em caracol que balançam a cada passo. “Fomos nós que colocamos ela aqui”, diz, sem soltar a barra de ferro. O “nós” é a família: ela e os filhos que, a cada degrau, foram levantando o imóvel de três andares, no qual cada pavimento tornou-se uma moradia. No segundo deles, a caçula cresceu até virar adulta. Foi ali que Joseilda se tornou avó.

Auxiliar de serviços gerais, hoje com 50 anos, Joseilda mede a vida por tijolos erguidos e degraus vencidos. Quando chegou ao Moinho, a filha Hilda Vitória tinha três anos. O primeiro barraco, de madeira, não resistiu ao incêndio do Réveillon de 2011. Restou só a roupa do corpo e a teimosia de recomeçar. A reconstrução veio com restos de material, a ajuda de colegas de um condomínio onde ela trabalhava e a decisão de não deixar o lugar.

A favela do Moinho, encravada entre os trilhos das linhas Rubi e Turquesa da CPTM, é a última grande comunidade do centro de São Paulo. Nascida nos anos 1990, virou símbolo de resistência e de abandono. Dois incêndios de grandes proporções — em 2011 e 2015 — deixaram cicatrizes que ainda aparecem nos escombros e na memória. Entre promessas de urbanização e ameaças de remoção, o território foi sendo empurrado para uma condição permanente de provisório.

Foi nessa casa reerguida que Hilda cresceu. Hoje com 21 anos, ela divide o tempo entre a faculdade de Psicologia e a luta por garantir um teto que, no papel, já deveria estar assegurado.

Joseilda Juvenal da Silva e a filha Hilda Vitória na casa da família no Moinho. Elas relatam incerteza sobre o futuro e cobram cumprimento do acordo de reassentamento | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Disputa por um lugar

A história se enrosca no projeto de “revitalização” do centro. A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) enquadrou o Moinho como área a ser removida para dar lugar a um parque e, mais adiante, a uma estação de trem. A União, dona do terreno, negocia ceder a área ao Estado sob a condição de reassentamento definitivo e transparente.

Em maio, depois de semanas de tensão, os governos estadual e federal anunciaram moradias gratuitas : cada família receberia uma carta de crédito de R$ 250 mil para adquirir um imóvel à sua escolha, com recursos do Minha Casa, Minha Vida e Casa Paulista. No papel parecia simples. No chão de terra, não. “Conseguir entregar esse centro limpo, e o conceito de limpeza aí é importante, é um plano antigo. A favela do Moinho é um problema para essa perspectiva de governos e prefeituras”, avalia Acácio Augusto, professor de Relações Internacionais da Unifesp e coordenador do LASInTec

As famílias que teriam o benefício já estavam sendo cadastradas pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU), que estimou em 850 o número de núcleos existentes na comunidade. O levantamento serviria para calcular quantos precisariam ser reassentados. No caso da família de Joseilda, a casa que ela ergueu tijolo por tijolo foi deixada para a filha Hilda — reconhecida em um contrato da CDHU como proprietária de um imóvel no Moinho.

O documento, porém, é de um período em que o acordo previa financiamento, e não a entrega gratuita das casas. Quando o governo Lula garantiu a gratuidade, o cadastro da estudante deixou de ser considerado regular, segundo relatam mãe e filha. Desde maio, a resposta que recebem da CDHU é de que ”a situação está em análise”.

A família guarda contas de água em nome de Joseilda, um formulário do programa Água Legal da Sabesp de 2017 e, sobretudo, um termo de adesão da CDHU que reconhece o imóvel de Hilda. Na prática, o Estado já havia validado o direito da jovem.

Em 2022, após um acidente grave do filho mais velho, Joseilda se mudou temporariamente para cuidar dele. Alugou um dos três pavimentos da casa para um inquilino, que disse que não ficaria, mas acabou incluído no cadastro. Quando a regra mudou e as moradias passaram a ser gratuitas, o nome dele permaneceu como beneficiário do acordo e o de Hilda desapareceu, ainda que seguisse como moradora do segundo andar do mesmo imóvel.

O impasse se agravou após a prisão de lideranças comunitárias em setembro, que até então acompanhavam de perto os cadastros e serviam como interlocutoras junto aos governos. Sem elas, famílias como a de Joseilda e Hilda relatam sentir-se ainda mais desamparadas diante da burocracia.

A família exibiu ao CDHU o termo de adesão, históricos escolares, contas de água, relatos de vizinhos, para provar que vivia ali e tinha também direito à moradia gratuita. Nada andou. “Você luta a vida inteira e vem alguém querer tomar da gente assim, na maior cara de pau”, diz Joseilda. Ela teme pela filha que volta da faculdade à noite sem saber onde vai morar.

Morador caminha entre escombros de casas derrubadas no Moinho, na região central de São Paulo. A CDHU tem conduzido demolições na comunidade | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Situação de ‘guerra urbana’

O histórico recente do Moinho ajuda a explicar o clima de incerteza que persiste. Em 12 e 13 de maio, o governo estadual iniciou as demolições na comunidade, acompanhadas pela Polícia Militar. As operações foram marcadas por bombas de gás, tiros de borracha, correria, crianças passando mal, pelo menos três pessoas feridas e detenções. No primeiro dia, seis barracos foram derrubados. No segundo, a PM entrou cedo com operários da CDHU.

“Os processos de remoção do Moinho são fatos de uma guerra urbana”, analisa o professor. “Não se trata de militarização, mas de policialização violenta da vida social. Espaços como a Cracolândia ou o Moinho servem de laboratório de técnicas de intervenção”.

Na época, o governo Tarcísio alegou que derrubava estruturas já vazias para evitar reocupação e garantir segurança. O governo federal, que inicialmente havia admitido apenas a “descaracterização” de casas desocupadas de forma cuidadosa, reagiu às denúncias de violência: em nota, disse não concordar com a ação policial, anunciou uma notificação extrajudicial e informou que poderia suspender a cessão do terreno ao Estado. A disputa de versões se acirrou, mas as demolições prosseguiram.

Naquele período, Estado e União divulgaram números diferentes sobre famílias reassentadas e valores destinados ao programa. Apesar dos anúncios de recursos e homologações, seguiam em aberto questões centrais: quantas casas haviam sido entregues, quem bancava o auxílio-moradia e qual o cronograma real de entrega das chaves. O governo Tarcísio vem reiterando publicamente que arca sozinho com o pagamento dos auxílios-moradia e que o governo federal, por meio da Caixa, não tem atuado de forma presencial junto à comunidade.

A Ponte questionou o Ministério das Cidades sobre o assunto. Em nota, o Ministério das Cidades informou que a realocação das famílias do Moinho é feita em parceria com o governo estadual, sem custo para os beneficiários. A pasta citou o caso de Hilda Vitória e disse que 552 famílias já foram habilitadas, 70 têm pendências e 139 contratos foram assinados.

Escombros, ratos e medo

Entre uma nota e outra, a comunidade vai se esvaziando. Na entrada do Moinho, logo após a linha do trem, restam poucos imóveis de pé. Da barbearia que ficava na chegada, sobrou um pedaço de parede com o desenho de um barber pole — o cilindro listrado de vermelho, branco e azul. São raros também os comércios que ainda funcionam. Antes, a favela tinha de tudo: dava para comprar pão, frango assado ou até lingerie sem sair dali. Hoje, até para o básico, muitos moradores precisam se deslocar para fora.

Nem mesmo a escola da comunidade permanece de pé. Era ali que os moradores conseguiam garantir atividades para os filhos no contraturno escolar. O espaço também foi visitado pelo presidente Lula em sua passagem pelo Moinho. Na ocasião, os alunos ensaiaram durante uma semana para apresentar ao presidente e à primeira-dama, Janja, a música Trem Bala, da cantora Ana Vilela.

Os que permanecem à espera de um imóvel definitivo improvisam para lidar com a infestação de ratos e escorpiões, que virou rotina. Alguns espalharam ratoeiras pela casa, outros recorreram a serviços de dedetização mais de uma vez. Nada resolveu. Uma família chegou a abandonar o segundo andar de um imóvel para não conviver com os animais.

A proliferação começou depois das demolições conduzidas pela CDHU. As casas são derrubadas sem que o entulho seja retirado. Ficam no chão restos de telhas, paredes pela metade, móveis quebrados, roupas espalhadas e até fotos de famílias que construíram a vida ali.

Interior de uma estabelecimento demolido no Moinho, na região central de São Paulo. Entre os escombros, restos de móveis e um manequim abandonado | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

‘Uma mini Gaza no coração de São Paulo’

A presença do poder público hoje se resume a uma base da Polícia Militar na entrada e a equipes da CDHU derrubando casas. A iluminação pública rareia, os escombros atraem ratos, o medo vira rotina. É nesse cenário, entre entulhos e pragas, que Joseilda teme ver a filha Hilda voltando tarde da faculdade e entrando sozinha em uma favela cada vez mais deserta. “Eu não tenho condição de deixar a Hilda chegando de meia-noite da faculdade sem saber onde vai morar”, diz.

Na entrada do Moinho, a qualquer hora do dia, a cena é de usuários de drogas espalhados pelas vielas. A imagem lembra a da região conhecida como Cracolândia, antes marcada pela concentração de pessoas em situação de dependência. O contraste desmonta o discurso oficial: a promessa era de que a remoção do Moinho ajudaria a resolver o uso de drogas no centro. O que se vê, no entanto, é apenas o deslocamento do problema.

Para Acácio, esse cenário traduz como o Estado usa o território como vitrine de força policial: “Da mesma maneira que armas testadas em Gaza são vendidas no mundo inteiro, essas ações atestam a capacidade de combate da polícia. É absurdo, mas verdadeiro: o Moinho virou uma mini Gaza no coração de São Paulo.”

A versão oficial do governo Tarcísio sempre associou o Moinho à logística do tráfico do Primeiro Comando da Capital (PCC) e ao abastecimento da Cracolândia. Essa leitura ganhou força depois de uma megaoperação de 2024, quando investigações do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) apontaram que grande parte da droga que circulava no centro sairia dali.

É nesse enquadramento que a gestão estadual justifica tanto a remoção da favela quanto a repressão policial, ligando a desocupação à estratégia de esvaziar as cenas abertas de uso de crack e viabilizar a chamada requalificação do centro.

“É comum você associar camadas populares à criminalidade como forma de neutralização. Da noite para o dia, uma liderança comunitária é descoberta como traficante. Isso torna tudo muito suspeito”, diz Acácio. Ele aponta ainda que o Moinho se transformou em palco de uma disputa política entre governos de partidos opostos. “Para variar, quem paga é a ponta mais fraca: os moradores, que estão sendo expulsos, alvos de operações policiais, bombas de gás, criminalização”.

O que dizem as autoridades

A Ponte questionou a CDHU, o Ministério das Cidades, a Defensoria Pública e o Ministério Público sobre a situação da família de Joseilda e Hilda e dos reassentamentos no Moinho. O MP-SP respondeu dizendo que a 5ª Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital instaurou um inquérito civil para acompanhar a retirada dos moradores e o desfazimento da Favela do Moinho. O procedimento foi aberto após audiência pública realizada em abril e leva em conta denúncias de que a desocupação estaria ocorrendo sem um plano de reassentamento e que há relatos de violência durante as operações.

A Defensoria informou que o Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo atende coletivamente os moradores da Favela do Moinho, incluindo o caso de Hilda e de outras pessoas em situação semelhante, que relataram dificuldades de acesso ao atendimento habitacional. Em conjunto com a Defensoria Pública da União, o núcleo diz ter ajuizado pedido de tutela antecedente — uma medida judicial de urgência — questionando falhas na execução do reassentamento e buscando garantir que todas as famílias sejam contempladas em políticas habitacionais que assegurem o direito à moradia digna.

Em nota, o Ministério das Cidades afirmou que a realocação das famílias da Favela do Moinho ocorre por meio de acordo entre governo federal e estadual, utilizando recursos do Minha Casa, Minha Vida e da CDHU. O ministério destacou que os beneficiários podem optar por imóveis de até R$ 250 mil ou por moradias estaduais, sem custo, e citou o caso de Hilda Vitória Silva Mendes Machado, já atendida pelo programa. Segundo a pasta, 552 famílias foram habilitadas, 70 ainda têm pendências no cadastro e 139 contratos já foram assinados. A CDHU não respondeu. Caso haja resposta, o texto será atualizado.

Leia a íntegra da nota do Ministério das Cidades

“Importante destacar que as ações de realocação das famílias da Favela do Moinho foram motivadas pela situação de alta vulnerabilidade social, condição de extrema precariedade e insegurança habitacional. Para viabilizar o atendimento às famílias residentes do local foi firmado acordo entre governo federal e o governo do Estado de São Paulo, representado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU).

A partir da modalidade Compra Assistida, que faz parte do Minha Casa, Minha Vida, e utiliza recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), duas possibilidades foram traçadas para as famílias: escolher um imóvel em qualquer cidade do estado de São Paulo, no valor de até R$ 250 mil; ou ser atendidas imediatamente pelo modelo de moradias da CDHU. Em ambos os modelos as famílias precisam se cadastrar junto ao governo do Estado, que é responsável pela habilitação dos beneficiários e enviar as informações à Caixa Econômica Federal.

No primeiro formato, após habilitação, análise e aprovação da documentação pela Caixa, o nome do beneficiário é publicado no site da instituição financeira e ele está apto a escolher a nova moradia. Atualmente, 552 famílias já estão enquadradas nessa linha de atendimento e 70 ainda apresentam pendências no cadastro. A expectativa é que essas famílias possam escolher suas novas moradias ainda na primeira quinzena de outubro.

Devido à urgência de realocação das famílias, ficou estabelecido também que os beneficiários com atendimentos já iniciados antes do acordo entre União e governo de São Paulo, por meio de atendimento próprio da Companhia, pudessem mudar para residências disponibilizadas pelo programa estadual. Até o momento, dentro do acordo estabelecido entre os governos federal e estadual, foram assinados contratos com 139 famílias, como o caso citado da moradora Hilda Vitória Silva Mendes Machado, e 56 estão com esse processo em andamento. Nesse caso, após o atendimento dos beneficiários, ocorre o acerto de contas entre os governos estadual e federal.

De qualquer forma, o beneficiário enquadrado dentro das regras do programa não paga nada. Os recursos são oriundos do acordo entre governo federal, que aportou R$ 180 mil por família, e o governo do estado, que investiu R$ 70 mil por família”.

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