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Projeto que limita desapropriações de terras liga alerta para movimentos e governo diz que vetará

por Gabriel Anjos
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Por Lorenzo Santiago – Brasil de Fato 

No mesmo dia em que aprovou um dos maiores projetos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Congresso avançou uma proposta que, para movimentos populares e pesquisadores, representa um retrocesso na reforma agrária no Brasil.

O Projeto de Lei 4.357 de 2023 que determina mudanças nas desapropriações de terras improdutivas foi votado na Câmara dos Deputados e agora vai ao Senado, em um movimento criticado por quem discute a distribuição de terras no Brasil.

A principal crítica é em relação à constitucionalidade do projeto. O PL proíbe a desapropriação de terras que estejam produzindo, mesmo que elas não cumpram uma função social, não atinjam o mínimo exigido para a produção ou que sejam espaços usados para cometimento de crimes.

A Constituição hoje garante que as propriedades produtivas podem ser desapropriadas quando elas não cumprem função social. De acordo com a lei 8.629 de 1993, função social é entendida como:

  • aproveitamento racional e adequado;
  • utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
  • respeito às leis de trabalho; e
  • exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O PL articulado pela bancada ruralista propõe que as terras sejam desapropriadas somente quando esses critérios forem descumpridos e que a terra seja considerada produtiva. Com isso, uma terra que tenha trabalho análogo a escravidão, por exemplo, não poderá ser desapropriada se o proprietário provar que mantém o terreno produtivo.

A lei brasileira considera uma propriedade produtiva aquela que atinge um grau de utilização de pelo menos 80% e que tenha um grau de eficiência na exploração da terra de pelo menos 100%. O grau de eficiência é a avaliação sobre o quão uma área é bem usada em comparação com seu potencial.

O PL foi proposto pelos deputados Rodolfo Nogueira (PL-MS) e Zucco (PL-RS). O texto deixa claro que o objetivo é impedir que terras sejam desapropriadas para a reforma agrária e afirma que isso teria um “impacto negativo na economia brasileira” e na segurança alimentar da população.

O argumento, no entanto, contradiz com dados históricos levantados pelos principais institutos brasileiros.

De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 0,7% das propriedades ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Essas grandes terras são destinadas, em sua maioria, para a exportação. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que cerca de 70% dos alimentos que chegam aos brasileiros vêm de produções familiares.

O MST criticou o projeto e disse que esse é um ataque aos direitos conquistados pelos movimentos populares

Inconstitucional?

Para pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato, o PL afronta de maneira direta a lei brasileira que estabelece a desapropriação como uma ferramenta jurídica para garantir uma distribuição justa das terras no país e garantir a produtividade. A lei 4.504/1964 garante que a reforma agrária seja um conjunto de medidas para promover uma “melhor distribuição da terra”, a partir de mudanças na posse e uso, para atender aos “princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”.

Para José Sobreiro Filho, professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB) e vice-coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa das Lutas por Espaços e Territórios (Dataluta), a proposta é “absolutamente desonesta”, porque usa do argumento que a reforma agrária pode reduzir a produção e “estimular conflitos”, mesmo sem apresentar dados para isso.

“A história do Brasil prova que o latifúndio que não cumpre a sua função social é quem causa essas mazelas. Isso coloca no horizonte a possibilidade de extermínio dos outros. Esse PL é desonesto e promove uma contraofensiva de reforma agrária. Michel Temer e Jair Bolsonaro avançaram com uma contrarreforma agrária, atacando agora a questão da função social. E olha só, trabalho escravo pode ser retirado desse arcabouço ético e moral”, disse ao Brasil de Fato.

Para o pesquisador, esse projeto não se sustenta e pode ser vetado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Ceres Hadich é integrante da direção nacional do MST e concorda com essa tese. De acordo com ela, o texto não só é um ataque ao direito da reforma agrária no país, como também expõe a incapacidade de articulação do governo Lula no Congresso em relação às pautas que enfrentam o agronegócio.

“É um ataque à reforma agrária e à Constituição, porque ofende o direito da reforma agrária previsto na Constituição brasileira. Mas é resultado da incapacidade do governo de se articular nesse enfrentamento. Qualquer projeto passa sem muita dificuldade, sem possibilidade de o governo frear isso. Tem um desdobramento em uma batalha longa, que ainda vai para o Senado”, disse ao “BdF”.

Opções para o governo

Integrantes do governo entendem que a disputa foi dura no Congresso, mas ainda há ferramentas para barrar esse projeto. Um deles é dentro da tramitação do PL. O texto pode ainda ser derrubado no Senado, mas a Frente Parlamentar Agro (FPA) conta com 50 senadores, o que facilita uma aprovação sem sustos no plenário.

O passo seguinte seria o veto do presidente. O governo está convencido de que, se receber essa proposta, vai vetar. Esse veto, no entanto, pode ser derrubado pelo Congresso mais tarde, forçando a aprovação do texto.

A última opção é a judicialização desse processo com um pedido feito ao Supremo Tribunal Federal (STF). A alegação seria justamente a inconstitucionalidade da ação. Há um precedente recente aberto pela Corte. Em junho, o STF validou decretos que possibilitam desapropriação para fins sociais.

O deputado João Daniel (PT-SE) é integrante da Comissão de Agricultura da Câmara e participou dos debates sobre o PL. Ele afirma que, hoje, é muito difícil fazer esse debate político com os congressistas da FPA que tem não só interesses econômicos muito claros, como também contam com a esmagadora maioria da comissão.

“O Senado pode não aprovar e se for aprovado ele não será sancionado pelo presidente. A nossa legislação é muito clara sobre o que pode ser desapropriado. Não se pode transformar uma legislação que foi aprovada na Constituição de 1988 para uma reversão. Nenhuma propriedade tem um processo rápido. Mas o Incra consegue fazer o assentamento dessas áreas e o processo fica por muito tempo”, explicou.

A aposta da extrema direita, no entanto, é fazer uma “moeda de troca” com o STF com esse PL, já que essa ala está insatisfeita com uma decisão recente do Supremo. Em 2023, a Corte emitiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5623, que determinava que os registros imobiliários de territórios que estão na fronteira deveriam ser feitos pelo Incra, respeitando a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária.

O jogo da FPA feito nesta quarta-feira envolveu também o PL 4.497/2024, que justamente confronta essa decisão do STF. O texto propõe que o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) seja uma prova suficiente de que o produtor cumpre a função social da terra, algo que simplificaria o processo de registro para produtores que não cumprem a função social.

A leitura do governo é de que, com esse pacote, a FPA mobilizaria o STF para analisar os dois projetos e tentaria politizar a questão afirmando que seriam “muitas derrotas” de uma vez. Além disso, os congressistas da base do governo afirmam que a FPA tem consciência de que esses projetos são inconstitucionais, mas forçou a aprovação não só para atender interesses econômicos, mas também para mobilizar a sua base mirando as eleições de 2026.

CPI como origem

O interesse dos deputados autores do PL na disputa por terras no Brasil não é de hoje. Além de articular a criação da Frente Parlamentar Agro do Rio Grande do Sul, Zucco presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o principal movimento que luta pela reforma agrária no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2023.

O PL foi criticado pelo MST, que entende que há uma articulação formada no Congresso para defender o interesse dos latifundiários e dos grandes empresários que atuam no campo. Hadich afirma que esse PL é um desdobramento claro da CPI. O relatório final da comissão propôs 23 projetos de lei, entre eles o que foi aprovado nesta quarta na Câmara.

A CPI, no entanto, terminou sem que o relatório do deputado Ricardo Salles (PL-SP) fosse votado. Hadich afirma que esse projeto não tinha força até que o deputado Pedro Lupion (Republicanos-PR) assumiu a relatoria do texto e instrumentalizou politicamente o texto. O congressista também tem interesse direto no projeto por ser de família com propriedades rurais.

Seu pai, Abelardo Lupion, além de ex-deputado, é dono de terras em Santo Antônio da Platina (PR). Ele também foi presidente da FPA.

A falta de eficácia da CPI gerou uma frustração desses setores, que tiveram que coordenar uma outra ofensiva contra a reforma agrária, mas por meio deste projeto de lei.

“Esse PL está dentro de um contexto que é a ofensiva dos últimos anos e a correlação de forças muito desfavoráveis no parlamento, especialmente na questão agrária. A bancada ruralista está preparada para fazer esse debate. Esse projeto também tem uma conexão com a última CPI contra o MST, porque os proponentes são vinculados a essa CPI. A comissão teve um insucesso porque terminou sem um relatório final, mas ele se articula para garantir essa legislação”, aponta Hadich.

Baque para a luta

A aprovação do texto mexe com a luta pela reforma agrária no Brasil. Os movimentos que discutem o tema no país usam a legislação e a Constituição como principal argumento para que seja feita uma redistribuição de terras improdutivas e que não cumprem a função social. Sem o respaldo legal, será preciso encontrar outros caminhos para fazer o debate.

Sobreiro Filho afirma que esse movimento da FPA faz parte de uma disputa política pelas leis do país e que isso também deve ser feito pelos movimentos.

“O MST disputa leis e a Constituição. Não só a terra pela ocupação. Essa também é uma disputa jurídica e cultural feita pelo agronegócio. A destruição da função social e a retirada de questões morais dessa pauta coloca uma nova base ética, mas que segue imoral. As elites nacionais tentam garantir seus privilégios e seguir acumulando sua agenda voltada para a exportação. É um ataque ao povo brasileiro”, afirmou.

Na avaliação de quem está na luta, isso também é uma forma de tentar desmobilizar os movimentos e atacar a “esperança, as possibilidades e os instrumentos jurídicos” que dão respaldo — não só legal, mas também moral — para os militantes.

Mesmo com a garantia da lei para a reforma agrária, os militantes afirmam que os ataques são sistemáticos e, muitas vezes, partiram dos próprios presidentes. Fernando Collor e Itamar Franco avançaram pouco na redistribuição de terras.

Já Fernando Henrique Cardoso (PSDB) editou uma Medida Provisória em 2000 proibindo que terras ocupadas fossem para a reforma agrária, além de proibir a vistoria de terras ocupadas por movimentos sociais por até dois anos. A medida também determinava que os assentados de ocupações não poderiam participar do programa de reforma agrária.

“A redemocratização oportunizou que os movimentos façam a sua luta em espaço público, mas não a participação política desses sujeitos. Não garantiu segurança e de lá pra cá se relacionou com agendas ostensivas”, conclui Sobreira.

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