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Por Paulo Batistella — Ponte Jornalismo
A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) avançou com um projeto de lei complementar (PLC) para estabelecer em lei um prazo para que seja paga a bonificação por resultados para policiais militares — adicional com o qual o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) já distribuiu R$ 2,86 bilhões em privilégio de PMs e em detrimento de outros servidores, conforme a Ponte revelou.
Uma proposta com esse tema deveria partir exclusivamente do governador, conforme prevê a Constituição do Estado de São Paulo. No entanto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Alesp — responsável por analisar a constitucionalidade de projetos de lei — fez uma manobra para aprová-la no mês passado: transformou ela em uma proposição “autorizativa”, um tipo de texto sabidamente inconstitucional.
O PLC 45/2024, que trata do tema, foi proposto pelo deputado estadual Major Mecca (PL), ex-integrante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), o batalhão mais letal da Polícia Militar paulista (PM-SP). O texto mudaria a lei complementar 1.245/2014, que regulamenta o pagamento do bônus aos policiais. A bonificação por resultados é um adicional no salário condicionado ao cumprimento de metas. Antes de o governo proceder com o pagamento, uma comissão intersecretarial precisa publicar no Diário Oficial do Estado (DOE) os objetivos a serem atingidos e quais deles foram efetivamente alcançados.
O texto original de Mecca sugeria então um prazo de 90 dias, contados a partir do fim do período de avaliação, para que a comissão definisse os resultados e fizesse a apuração deles. A proposta ainda estabelecia que, após isso, o governo teria 60 dias para fazer o pagamento da bonificação. Na prática, isso iria acelerar o pagamento do bônus aos policiais, já que atualmente não há prazos firmados em lei para a consolidação e pagamento do adicional. Os agentes são avaliados por resultados obtidos a cada bimestre e, em geral, são recompensados apenas no ano seguinte.
CCJ fez manobra para avançar com texto inconstitucional
O relator do projeto na CCJ, o deputado e pastor Carlos Cezar (PL), reconheceu, em um parecer sobre o texto, que nos termos trazidos por Mecca ele seria inconstitucional, já que iniciativas desse tipo competem exclusivamente ao governador, por tratar de servidores públicos e suas remunerações.
Propôs então uma manobra sutil no texto: iniciá-lo com a expressão “fica o Poder Executivo autorizado a […]”. Neste caso, a proposta passou a apenas “autorizar” que o governador adote as providências necessárias para por em prática as mudanças idealizadas por Mecca.
“Observa-se que esta CCJ tem acolhido diversas proposições de natureza ‘autorizativa’”, limitou-se a argumentar o relator no parecer. Na nova versão, o texto foi aprovado por unanimidade pela CCJ, em 10 de setembro deste ano — também votaram os deputados Thiago Auricchio (PL), Reis (PT), Mauro Bragato (PSDB), Solange Freitas (União Brasil), Marcelo Aguiar (Podemos), Marta Costa (PSD) e Delegado Olim (PP).
Apesar da mudança, ele segue, contudo, inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu em diferentes ocasiões que “proposições autorizativas” ferem a Constituição, mesmo que o Executivo, posteriormente, sancione a lei — o vício na origem da proposta se mantém. Quando sancionados, textos assim ainda têm validade até que o Judiciário os declare inconstitucional.
O PLC 45/2024 está agora na Comissão de Administração Pública e Relações do Trabalho (Ctasp) da Alesp, onde deverá ter relatoria do deputado Leonardo Siqueira (Novo).
Alesp ignora outros servidores, que recebem menos e mais devagar
A proposta de Mecca ignora os servidores de outras secretarias que não os da Segurança Pública, cuja bonificação por resultados também não tem prazos firmados na legislação. Para quem não é policial, o bônus é regulamentado pela lei complementar 1.361, sancionada em 2021.
A Ponte já mostrou que, mesmo sem a existência de um calendário de pagamento para qualquer dos servidores, os policiais militares têm sido privilegiados tanto em volume de dinheiro quanto na maior celeridade para recebimento do bônus. Os PMs tiveram os resultados de 2024 consolidados em maio deste ano e receberam R$ 829,7 milhões em bonificações ao longo do mandato de Tarcísio.
A título de comparação, os servidores vinculados à Secretaria da Saúde precisaram entrar em greve no começo deste mês após o governador descumprir um acordo para a quitação do adicional: eles só tiveram o bônus relativo às metas de 2023 e, durante a gestão Tarcísio, receberam R$ 2,3 milhões — ou seja, o valor distribuído pelo governador aos policiais militares é 367 vezes maior.
Major tentou outras propostas para beneficiar PMs com bônus
O deputado Major Mecca, em seu segundo mandato, já havia proposto outros dois projetos relativos à bonificação por resultados, ambos também em benefício apenas de PMs. Em 2019, propôs um PLC para que a bonificação fosse paga também a veteranos das polícias e pensionistas. O texto não avançou e acabou arquivado em 2023, no início de uma nova legislatura.
Em 2020, ele havia proposto um outro projeto para que a bonificação fosse paga também a militares inativos e da reserva. Queria ainda que, entre outras coisas, o cálculo do bônus deixasse de levar em conta o número de dias de trabalho do policial beneficiado e os resultados obtidos no território em que atua. O projeto também foi arquivado em 2023. O relator do texto na CCJ, o então deputado Marcos Zerbini (PSDB), afirmou que a iniciativa era inconstitucional, porque deveria vir do governador.
Atualmente ainda tramitam em comissões da Alesp dois textos relativos à bonificação paga aos policiais, ambos de iniciativa da deputada estadual Dani Alonso (PL). Com o PLC 65/2023, ela propôs que passe a constar em lei que o bônus tem natureza indenizatória — o que faria com que o imposto de renda não possa incidir sobre ele. Já com o PLC 33/2024, a parlamentar quer que a legislação deixe claro que descontos de assistência médica ou de natureza tributária não podem incidir sobre o adicional.
Os dois projetos tratam de mudanças apenas na lei que regulamenta a bonificação paga aos servidores vinculados à SSP-SP. Portanto, também ignora os trabalhadores de outras pastas.
PMs já privilegiados com ‘Bônus do Tarcísio’
A Ponte publica desde junho uma série de reportagens sobre o “Bônus do Tarcísio”, com a qual revelou que, até a metade deste ano, policiais militares já haviam ficado com 30,5% do valor já distribuído pelo governador a título de bonificação por resultados (o equivalente a R$ 827 milhões) — embora eles representem 15,8% dos servidores do Estado (cerca de 82 mil de um total de 519 mil).
Também identificou que o governo Tarcísio tem pago as bonificações com base em metas que foram definidas só depois de passado o período no qual deveriam ter sido cumpridas. A bonificação tem tido transparência frágil, já que não é divulgado quem a recebeu ou quanto foi pago a cada um.
Além disso, a Ponte apurou que o bônus dado aos policiais ignora, entre os critérios exigidos para a recompensa, o combate a crimes como tráfico de drogas, estupro, estelionato, sequestro, desaparecimento forçado, lesão corporal seguida de morte e posse ilegal de arma de fogo, entre outros.
Especialistas e servidores ouvidos pela reportagem afirmam ver robustos indícios de que o bônus tem sido usado não como um incentivo por méritos e para a eficiência da máquina pública, mas de modo arbitrário e político — ou seja, como um agrado a uma das bases políticas do governador no estado e também como um aceno ao eleitorado que preza pela militarização da segurança pública.