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Quase 2 mil quilômetros separam as duas confortáveis prisões domiciliares dos ex-presidentes Fernando Collor (Maceió) e Jair Bolsonaro (Brasília). O primeiro e o penúltimo mandatário da chamada Nova República foram condenados, respectivamente, por corrupção e tentativa de golpe de Estado.
No imaginário popular, no entanto, o castigo se deve também às duas principais pragas que marcaram os tumultuados desgovernos da dupla. Collor estaria pagando pelo confisco da poupança; Bolsonaro pelo negacionismo oficial que levou ao atraso da vacina e a aglomerações causadoras de mortes durante a pandemia da Covid-19.
Façamos uma retrospectiva nas duas histórias de crueldade dignas de autocratas. É preciso tomar de novo essa cápsula de memoriol para que o esquecimento não corra nas veias abertas do Brasil.
Bem-vindo, se é que isso é possível, aos anos 1990. Tem gente que não acredita até hoje que a medida possa ter sido verdadeira, tem gente que perdeu parentes — por depressão e suicídio —, tem gente que virou sem-teto, tem gente que foi obrigada a começar do zero.
Por mais bizarro e incrível que pareça, um dia depois da posse, em 16 de março de 1990, o presidente Fernando Collor decretou o confisco da poupança dos brasileiros, em um pacote chamado orgulhosamente de Plano Collor. O anúncio foi feito pela ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello, em uma das coletivas de imprensa mais chocantes da história do país — os jornalistas não compreendiam o que estava ocorrendo e quanto mais as autoridades “explicavam” mais ficava confuso.
Cada pessoa ou empresa poderiam ficar apenas com 50 mil cruzeiros. O resto foi sequestrado em poder do Banco Central. Em 2022, 32 anos depois, ainda tem gente que tenta receber de volta aquela grana, conforme relatos dos jornais. O objetivo de toda a lambança econômica seria conter a inflação, na casa de 84% ao mês.
Em outubro de 1992, Collor renunciou ao cargo, depois que o Congresso concluiu o seu processo de impeachment. O presidente que havia sido eleito com a bandeira do moralismo e da ética foi derrubado por fazer parte de um esquema de corrupção sob o comando do empresário Paulo César Farias, o PC, ex-tesoureiro da sua campanha eleitoral. A inflação àquela altura ultrapassava a faixa dos mil por cento ao ano.
Trinta anos depois do confisco da poupança, em maio de 2020, o então senador alagoano pediu desculpas em uma postagem no Twitter: “Acreditei que aquelas medidas radicais eram o caminho certo. Infelizmente errei. Gostaria de pedir perdão a todas aquelas pessoas que foram prejudicadas pelo bloqueio dos ativos”. O pedido virou meme para uns e revolta para a maioria das pessoas nas redes sociais, inclusive brasileiros que haviam sido vítimas do plano econômico do ex-presidente.
Um mês depois, Collor jogou fora as sandálias da humildade e fez piadinha com o tema em uma nova postagem: “Voltei, pessoal! Ainda bem que não foi confisco, foi um bloqueio temporário!”. O político havia sido bloqueado temporariamente pela direção do Twitter no Brasil. Com o trocadilho, tentou negar mais uma vez que o seu governo tenha confiscado recursos das pessoas.
O que não falta nesse caso do confisco é anedota. Com juras de amor, a ex-ministra Zélia, ainda naquele tenebroso começo dos anos 1990, foi casada com Chico Anysio, o mais importante comediante do país. Ainda não vivíamos os tempos dos “memes” e das redes sociais, mas a chacota correu de boca em boca em todo Brasil: “Pela primeira vez na história, o humorista casou com a piada”.
Um pulo na história para 2020.
O governo de Jair Bolsonaro teria sido apenas cômico e folclórico se as suas bizarrices não representassem consequências desastrosas, muitas vezes até mortais, na vida dos brasileiros. Durante a pandemia de Covid-19, o presidente disse que a doença não passava de uma “gripezinha”, desaconselhou o uso de máscaras, promoveu aglomerações e atrasou a compra de vacinas. Em nenhum outro lugar do planeta, o Coronavírus contou com um aliado político tão conveniente.
Em depoimento à CPI da Covid, o epidemiologista Pedro Hallal revelou, baseado em estudos e pesquisas, que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso o Brasil tivesse adotado medidas mais rígidas de controle da pandemia e imunização mais rápida, ao contrário das orientações espalhadas por Bolsonaro e sua equipe. Até junho de 2022, o país registrava 670.459 óbitos por causa da doença.
Ao desempenhar o papel de garoto propaganda de hidroxicloroquina e ivermectina — comprovadamente ineficazes no tratamento de Covid —, o presidente cometeu o crime de charlatanismo, uma das principais acusações da CPI do Senado. Nas suas “lives” do Facebook e cerimônias oficiais, Bolsonaro exibia as caixas dos remédios e receitava o uso aos brasileiros. Uma cena, em especial, marcou essa obsessão presidencial: ele mostrou as embalagens dos medicamentos para duas emas no gramado do Palácio da Alvorada — as aves saíram correndo, em desespero.
Ao longo de 2020, Bolsonaro sabotou, de forma metódica, as tentativas dos governos estaduais e municipais de combaterem a pandemia, sempre se escorando em uma suposta “imunidade de rebanho” que seria alcançada graças à infecção generalizada da população. Quando começou a ser cobrado pelo número de mortes, ainda no segundo mês depois da chegada do coronavírus ao Brasil, respondeu: “Eu não sou coveiro, tá certo?”. Àquela altura, 20 de abril, o número de vítimas era de 2.575.
O festival de falas bizarras seguiu no rastro das mortes. Em novembro, Bolsonaro associou o medo dos brasileiros diante da pandemia à sexualidade: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?”
No mês seguinte, em Porto Seguro, no sul da Bahia, o presidente seguiu na sua cruzada negacionista contra as vacinas. “Eu não vou tomar. Alguns falam que eu estou dando um mau exemplo. Ô, imbecil, ô idiota. Eu já tive o vírus. Eu já tive anticorpos, para que tomar a vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem clara aqui: lá na Pfizer tá bem claro no contrato ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’, se você virar um jacaré o problema é de você, pô”, disse, em ritmo de desaforo. A frase levou inúmeros brasileiros a se fantasiar do réptil no momento de tomar a vacina nos postos de saúde.
A tentativa de desacreditar as vacinas seria atrelada a uma série de denúncias de corrupção. Segundo a CPI da Covid, o Ministério da Saúde teria postergado a decisão de comprar os imunizantes ao negociar propina com intermediários nos contratos.
Nesse período, o governo ignorou uma série de ofertas da Pfizer para vender sua vacina para o Brasil. A empresa farmacêutica havia encaminhado 56 e-mails às autoridades, perguntando sobre o interesse nas negociações. A administração federal demorou 47 e-mails para dar a primeira resposta, em 9 de novembro de 2020.
Ao mesmo tempo em que ignorava a Pfizer, assessores do governo andavam metidos em uma negociata paralela com um grupo comandado pelo pastor evangélico Amilton Gomes. A empreitada era um golpe por parte de Gomes, que não tinha qualquer contato com a Johnson e a Astrazeneca, farmacêuticas citadas na trama.
Como se não bastasse o rolo na compra dos imunizantes, conforme mostrou a CPI, Bolsonaro associou as vacinas à transmissão do vírus HIV. “Vacinados contra a Covid estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids]”, alardeou na sua live do dia 21 de outubro de 2021, amparado por notícias falsas. “Posso ter problema com a minha live. Não quero que caia a live aqui, quero dar informações”, disse o presidente. Três dias depois, o Facebook e o Instagram retiraram os vídeos mentirosos do ar.
O negacionismo virou uma marca presidencial. Quando a maioria dos brasileiros já havia tomado, mesmo com atraso, as duas doses do imunizante, Bolsonaro ainda esperneava, em março de 2022, em um evento no Palácio do Planalto: “O problema é meu, a vida é minha. ‘Ah, ele não tomou vacina’. Pô, tem gente que quer que eu morra e fica me enchendo o saco para eu tomar vacina. Deixa eu morrer…”.
Um levantamento da agência de checagem “Aos fatos” concluiu que o presidente deu uma média de 6,9 declarações falsas ou distorcidas por cada dia de 2021, o segundo ano da pandemia. O “normal”, desde o início da sua gestão, era um número de 4,3 mentiras ou inverdades a cada 24 horas.
Na compreensão popular, a corrupção de Collor e a tentativa de seguir no poder de Bolsonaro são atos criminosos. O confisco da poupança e as mortes sem vacina, porém, são pesadelos que ainda se repetem nas noites maldormidas.