Por Cleber Lourenço
O Senado já trabalha com uma hipótese concreta para o PL Antifacção: se a Câmara entregar um texto confuso, truncado e cheio de problemas, a Casa deve simplesmente reinstalar a versão original enviada pelo governo federal.
A avaliação entre líderes é direta e politicamente pesada: a Câmara virou uma usina de erros técnicos e recuos improvisados, e o Senado, na prática, passou a funcionar como a última barreira institucional contra projetos mal construídos.
Esse incômodo, que vinha crescendo nos bastidores, explodiu nas últimas semanas. Senadores relatam que a condução do presidente da Câmara, Hugo Motta, segue um padrão desgastado: pouco diálogo, muita pressão, versões remendadas e um vai e volta que transforma qualquer pauta sensível em um problema político.
As mudanças constantes feitas por Guilherme Derrite no relatório reforçaram a percepção de que o texto chega ao Senado sem solidez jurídica e lastro político.
A leitura dominante no Senado é que, se a Câmara insistir em entregar um texto instável, carregado de contradições ou sem coerência com o marco legal existente, o caminho mais seguro será restaurar o projeto elaborado pelo Ministério da Justiça. Para senadores influentes, isso não é apenas uma correção técnica, é um gesto de autoridade institucional e um recado claro à Câmara.
Renan Calheiros é um dos senadores que acompanha de perto cada desdobramento do PL Antifacção. Ele tem voz ativa no tema e carrega uma bagagem que reforça seu peso na discussão: já foi ministro da Justiça e defende a criação de uma estrutura específica para o combate ao crime organizado, com a separação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública em duas pastas distintas.
A experiência e a visão histórica de que o Estado precisa de mecanismos próprios e coordenados para enfrentar facções tornou Renan uma figura central no Senado na avaliação sobre o projeto.
Recentemente, o senador adotou a postura de mostrar que, quando o Senado decide barrar retrocessos, a Câmara costuma recuar. O episódio mais recente foi o enterro do PL da Blindagem, que só caiu após articulação direta dele e de Otto Alencar com a bancada do MDB.
O caso virou uma espécie de referência interna sobre os limites institucionais que o Senado está disposto a impor.
Na semana passada, ao comentar a aprovação do projeto do Imposto de Renda, Renan reforçou publicamente o papel do Senado:
“O projeto só andou após a ação política do Senado Federal e as manifestações públicas. […] O Senado, desta forma, reitera seu compromisso com o interesse público e não com agendas de nichos, grupos e até pessoas. Em vários episódios, este ano, este Senado, de maneira eloquente, repetiu que não é uma Casa Legislativa para reciclar resíduos autoritários e privilégios indefensáveis.”
A frase sintetizou o sentimento predominante hoje na Casa. Para diversas lideranças, restabelecer o texto original do governo é uma forma de impedir que o PL Antifacção se transforme em mais um projeto improvisado que fragilize a atuação do Estado no combate às facções.
Senadores admitem um certo cansaço na Casa, que constantemente precisa “arrumar a bagunça” das articulações problemáticas de Hugo Motta. Nos bastidores, avalia-se que a Câmara não teria ambiente para insistir em mudanças que já enfrentam desgaste público, e que expõem o isolamento e a inabilidade política do deputado.
A votação do PL Antifacção está prevista para a próxima terça-feira, após uma semana marcada por pedidos adiamentos sucessivos e seguidos relatórios do texto. Governadores da direita pressionaram, líderes da oposição reclamaram de falta de diálogo e até setores da base governista e do centrão criticaram o relator Guilherme Derrite por conduzir o debate sem ouvir os deputados.
O acúmulo dessas críticas consolidou a avaliação de que o Senado precisará reverter boa parte do estrago político produzido na Câmara.
O que dizia o texto original do governo
O projeto original, assinado por Lula em 31 de outubro de 2025 e elaborado pelo Ministério da Justiça, foi enviado ao Congresso em regime de urgência. A proposta tinha como objetivo modernizar o combate às facções e dar ao Estado instrumentos mais robustos para enfrentar grupos que dominam territórios e atividades econômicas.
O texto atualizava a Lei de Organizações Criminosas e criava a figura jurídica da “facção criminosa”, com penas de 8 a 15 anos quando houvesse domínio territorial ou econômico mediante violência ou coação. Homicídios cometidos por ordem de facções seriam enquadrados como crimes hediondos, com penas de 12 a 30 anos.
O projeto também ampliava as ferramentas de investigação, autorizando infiltração policial, atuação de colaboradores e acesso a dados de geolocalização em situações de risco. Outro ponto central era a criação do Banco Nacional de Facções Criminosas, destinado a integrar informações de inteligência em nível nacional.
O texto previa ainda o afastamento de agentes públicos ligados a facções, por decisão judicial, e a proibição de contratar com o poder público por 14 anos para condenados por envolvimento com esses grupos.
Medidas para asfixiar o poder das facções
Na frente financeira, o projeto buscava estrangular o poder econômico das facções, facilitando apreensão de bens, bloqueio de operações suspeitas e intervenção em empresas usadas para crimes. No sistema prisional, autorizava monitoramento do parlatório e transferências emergenciais de presos sem prévia autorização judicial em casos de motim.
Por fim, reforçava a cooperação internacional sob comando da Polícia Federal e permitia integrar o setor privado à produção de provas em situações específicas.
Esse era o desenho original elaborado pelo governo e é esse texto que parte expressiva do Senado já avalia restabelecer caso o projeto chegue da Câmara em condições consideradas insustentáveis técnica e politicamente.