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Por Cleber Lourenço
Diante do vai e vem em torno do PL Antifacção, o governo elaborou um levantamento para detalhar as divergências entre o projeto original enviado pelo Executivo e o texto apresentado pelo relator, Guilherme Derrite. O documento sistematiza, ponto a ponto, todas as alterações feitas no substitutivo — do redesenho das competências até a mudança no destino dos bens apreendidos — e mostra como dispositivos centrais da proposta original foram modificados ou suprimidos.
Organizado em formato de quadro comparativo, o material identifica as principais inflexões promovidas pelo relator, como o deslocamento de investigações da esfera federal para a estadual e a redistribuição de recursos oriundos de apreensões. Para o governo, essas mudanças descaracterizam o arcabouço construído ao longo de meses de discussão técnica e representam uma guinada no espírito do texto inicialmente encaminhado ao Congresso.
O que o governo previa e o que mudou com Derrite
No texto original do Executivo, a investigação e o julgamento de condutas relacionadas ao crime organizado de grande porte continuariam sob competência da Polícia Federal e da Justiça Federal. A justificativa era clara: manter na esfera federal crimes com dimensão interestadual ou transnacional, garantindo independência e atuação coordenada.
O dossiê registra que o substitutivo de Derrite altera esse núcleo ao reconfigurar pontos da Lei de Terrorismo e ao ampliar definições de condutas. Com isso, abre-se margem para que casos originalmente federais sejam absorvidos por polícias civis e tribunais estaduais. Para o governo, isso:
- cria conflito de normas,
- fragmenta investigações complexas,
- reduz a capacidade de atuação integrada da PF,
- enfraquece o enfrentamento de facções com presença nacional
Mudança estrutural no fluxo de recursos
O projeto do governo previa que a maior parte dos bens apreendidos de facções reforçaria fundos federais e estruturas da União dedicadas ao combate ao crime organizado. A lógica era abastecer a PF e órgãos nacionais com recursos derivados de operações recentes.
No texto de Derrite, a prioridade muda: os valores passam a ser destinados principalmente aos fundos estaduais e distrital do local da investigação. O dossiê aponta que essa alteração:
- reduz a capacidade financeira da União,
- esvazia fontes de investimento da PF,
- quebra a lógica de centralização de recursos para ações de grande porte
Tipos penais: o que não existia no projeto e foi incluído
O texto original do Executivo se apoiava na estrutura já consolidada da Lei de Organizações Criminosas. Pretendia reforçar dispositivos existentes, sem criar categorias novas.
Já o relator introduziu:
- a figura específica de “facção criminosa”,
- um catálogo ampliado de condutas e circunstâncias agravantes,
- o conceito de “domínio social estruturado”,
- tipos qualificados que não estavam na proposta governamental
Segundo o dossiê, essas mudanças ampliam o alcance penal de forma imprecisa e permitem usos expansivos, sem que o tema tenha sido discutido com o mesmo rigor técnico aplicado na elaboração do projeto original.
Gestão de bens apreendidos
Na concepção do Executivo, o uso provisório de bens apreendidos seria extremamente limitado, priorizando a preservação do valor até o final do processo. A regra era:
- restringir uso antecipado,
- impor manutenção obrigatória,
- evitar conversões rápidas e irreversíveis.
O substitutivo de Derrite altera esse eixo ao:
- permitir uso mais amplo e antecipado por órgãos de segurança,
- acelerar procedimentos de conversão e liquidação,
- incluir criptomoedas e títulos financeiros nesses fluxos
Para técnicos do governo, isso aumenta o risco de deterioração patrimonial e dificulta reparações caso decisões judiciais posteriores revertam apreensões.
Função de inteligência vira instrumento eleitoral
O projeto do governo concebida o banco como ferramenta de inteligência, dedicada a integrar informações entre forças de segurança.
O texto de Derrite:
- amplia o conteúdo do cadastro para incluir informações de natureza política e financeira,
- cria impactos eleitorais ao torná-lo critério para inelegibilidade,
- e condiciona repasses federais à adesão de estados e DF ao sistema.
O dossiê descreve esses acréscimos como pontos “de alta sensibilidade institucional”, por atrelar uma ferramenta de segurança pública ao jogo eleitoral.
Centralidade da União é substituída por condicionamentos
O projeto original previa um papel indutor da União, usando sua capacidade tecnológica e financeira para elevar padrões mínimos nacionais.
O texto de Derrite, porém:
- condiciona repasses a requisitos adicionais,
- redistribui o protagonismo para estados e DF sem coordenação equivalente,
- e transforma a política nacional de combate ao crime organizado em arena de barganhas federativas.
A síntese do dossiê
Ao comparar os dois textos, o levantamento preparado pelo governo sustenta que o substitutivo de Derrite altera profundamente o espírito da proposta original: descentraliza competências estratégicas, altera fluxos financeiros, cria tipos penais sem sustentação técnica prévia e amplia o caráter punitivista da legislação. O documento agora é usado pela base aliada para reorganizar a narrativa em torno do PL antifacção e tentar recompor trechos considerados essenciais pelo Planalto.