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Por Paulo Batistella – Ponte Jornalismo
Em 16 de maio de 2022, Eduardo Teixeira de Faria, hoje com 34 anos, encerrou seu dia de trabalho às 20h10. Às 5h52 da manhã seguinte, já estava novamente de pé, quando saiu de casa mais uma vez com a motocicleta carregada de pães, adaptada com um caixote na garupa e outro à frente do guidão. Dono de uma pequena padaria no andar debaixo do imóvel em que morava com a família no Jardim Guarani, zona norte de São Paulo, ele vende parte da produção com atendimento em domicílio ao circular pelo bairro de manhã e ao final da tarde. Naquele dia 17, o comerciante só retornou para descansar às 19h55.
No último dia 4 de agosto, quando também levantou cedo para atender a clientela no bairro, Eduardo foi abordado pela Polícia Militar paulista (PM-SP) e levado preso: havia um mandado em aberto contra ele por, supostamente, ter participado de um sequestro mais de três anos antes — entre aqueles dias 16 e 17 de maio nos quais saiu de casa ainda antes do sol nascer e trabalhou até a noite.
É a terceira vez que Eduardo é preso injustamente — vinculado a uma quadrilha autora de sequestros em São Paulo. Nas três ocasiões, a única prova na qual se baseou a denúncia contra o padeiro foi um reconhecimento feito em uma delegacia. Esse tipo de procedimento tem um valor probatório frágil se considerado de maneira isolada, como já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ser suscetível a vieses e distorções — e tem sido comum ele sustentar prisões injustas, conforme a Ponte demonstrou em diversas ocasiões.
Além deste caso de maio de 2022, Eduardo responde por um outro sequestro de setembro daquele ano — neste segundo processo, ele recebeu uma condenação no último dia 4 de agosto. Na sexta-feira (12/9), familiares, vizinhos e clientes do padeiro fizeram um protesto em frente à sede do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) na Praça da Sé, no centro da capital paulista.
(Foto: Ponte Jornalismo)
Busca sem mandado e prisão por suposto flagrante
A primeira prisão de Eduardo aconteceu na tarde do dia 2 de setembro de 2022. Era uma sexta-feira, único dia da semana em que ele não saía de moto para vender pães — permanecia na padaria ou em casa para ajudar a esposa, Larissa, devido ao único filho do casal ainda ser um bebê.
Na noite anterior, Eduardo havia ido a um açougue e retornado para casa às 19h58, conforme mostram as imagens de uma câmera de segurança instalada na única entrada da residência. Ele e a esposa fizeram um churrasco juntos — o que registraram com uma foto enviada a um grupo de WhatsApp às 21h20 — e foram dormir. Já na manhã do dia 2, o padeiro só saiu de casa às 11h42, para lavar, na rua em frente ao local, o carro da família e a moto com a qual faz entregas. Pouco depois das 16h, quando esperava o filho chegar da creche, decidiu ir a uma oficina mecânica, porque o carro estava falhando após a lavagem.
Na oficina, recebeu uma ligação da sogra na qual foi informado que diversos policiais chegaram à sua residência. Ele voltou para casa e, no local, foi avisado de que teria de ir a uma delegacia prestar esclarecimentos. Em sede policial, descobriu que, na verdade, era agora considerado preso em flagrante.
O crime do qual ele era suspeito teve ínício às 22h40 do dia 1º de setembro de 2022. A vítima, um homem de 36 anos, diz que marcou um encontro pelo Tinder, um aplicativo de relacionamentos, e, ao chegar ao local combinado com a suposta pretendente — na Avenida Deputado Cantídio Sampaio, na Vila Souza, na zona norte de São Paulo —, deparou-se com quatro homens que o sequestraram. Ele foi mantido até as 18h do dia seguinte em três diferentes cativeiros, onde foi agredido e teve a conta bancária roubada com transferências feitas pelos criminosos.
Ainda com a vítima desaparecida, o carro dela foi encontrado na Rua Itambé do Mato Dentro, no Jardim Guarani, a cerca de 600 metros de onde o padeiro mora e tem seu comércio. A Polícia Civil chegou a alegar que, quando investigadores foram ao local, teriam recebido a informação de moradores de que um dos sequestradores vivia ali: seria Eduardo, que os policiais identificaram como sendo o “Playboy” — apelido que o comerciante, conhecido no bairro como “Du Pão” e “Mineiro”, nunca teve.
A alegação dos investigadores era falsa: na verdade, eles foram diretamente à casa do padeiro porque, uma semana antes, em meio à investigação de um outro sequestro com circunstâncias parecidas, aquele dos dias 16 e 17 de maio de 2022, um suspeito delatou, a partir de um reconhecimento fotográfico, que Eduardo seria um de seus comparsas.
Os policiais entraram então na residência de Eduardo em 2 de setembro daquele ano sem terem um mandado judicial de busca e apreensão. Eles ainda levaram três celulares, uma bolsa com R$ 2,3 mil em dinheiro, três máquinas de cartão que ele utilizava para vender pães, duas pistolas de airsoft (que chamaram de simulacros de arma de fogo) e um dispositivo HD que continha todas as imagens das câmeras de segurança instaladas na residência do padeiro — deixaram para trás apenas um outro HD, com registros das câmeras da padaria e do portão da casa.
O HD apreendido, que poderia esclarecer definitivamente se Eduardo estava ou não em casa no momento dos sequestros de maio e setembro de 2022, nunca foi periciado. A Polícia Científica produziu apenas um laudo com cinco frames recuperados do dispositivo — um deles mostra o padeiro em casa às 14h23 daquele dia 2.
Eduardo foi colocado sozinho para reconhecimento — o que descumpre o Código de Processo Penal e recomendação do CNJ | Foto: Reprodução
Reconhecimento irregular sem outras pessoas ao lado
Também no dia 2 de setembro, com a vítima do sequestro já liberta, ela compareceu à delegacia para a qual Eduardo foi levado. No local, foi colocada de frente para o padeiro, isolado em uma sala, para reconhecê-lo como sendo ou não um dos criminosos.
O capítulo VII do Código de Processo Penal (CPP), que inclui do artigo 226 ao 228, estabelece uma série de regras para o reconhecimento de um suspeito. É determinado, por exemplo, que ele seja colocado ao lado de outras pessoas com características parecidas, para não induzir a escolha da vítima. No reconhecimento de Eduardo, em que ele ficou só, a delegada Luciana Peixoto Pinheiro Silva, da 3ª Delegacia de Repressão às Extorsões com Restrição de Liberdade, alegou que não havia indíviduos parecidos com o comerciante para que se passassem por figurantes na ocasião, conforme registrou em um auto de reconhecimento, um documento que descreve as circunstâncias do procedimento.
O CPP também define que a pessoa que faz o procedimento deve, antes dele, descrever o sujeito a ser reconhecido — a Polícia Civil diz que isso foi feito com Eduardo, mas não menciona no auto de reconhecimento quais foram as características descritas pela vítima previamente.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ainda orienta, com a Resolução 484/2022 e o Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas, que seja adotado um procedimento duplo-cego: ou seja, o próprio policial que conduz o reconhecimento não deve saber quem é a pessoa a ser reconhecida, e a vítima deve ser informada de que o criminoso pode ou não estar ali. Deste modo, se evita que o policial influencie a vítima no reconhecimento e também valide uma decisão dela, com comentários como “era esse mesmo o nosso suspeito”, o que pode condicionar etapas futuras de reconhecimento.
No caso de Eduardo, a vítima afirmou que ele era, sim, um dos sequestradores, segundo registrou a Polícia Civil. O advogado do padeiro, Alan Eder de Paula, presente na ocasião, relatou à Ponte que, na verdade, ela hesitou e só depois concordou com os policiais que aquele seria um dos criminosos.
O homem sequestrado afirmou que Eduardo era o criminoso que o teria ameaçado no segundo dos cativeiros, no qual acredita ter sido mantido entre as 5h da manhã e as 12h do dia 2. Os policiais acusaram o padeiro de ser também um dos quatro homens que abordaram a vítima no início do sequestro, na noite anterior, quando, na verdade, fazia o churrasco em casa. A prisão dele foi convertida em preventiva. Apenas em 22 de setembro de 2022, ele obteve um alvará de soltura.
Frame recuperado de HD mostra que Eduardo estava em casa na tarde do dia de um dos sequestros | Foto: Reprodução
Preso de novo com base em reconhecimento em delegacia
Eduardo acabou preso pela segunda vez, no entanto, em 17 de novembro de 2022. Na ocasião, ele permaneceu por 16 dias sob custódia, até 2 de dezembro, para participar de um novo procedimento de reconhecimento pessoal, desta vez por conta de um sequestro ocorrido em 16 e 17 de maio daquele ano.
A vítima do crime, agora um homem de 38 anos, diz que acabou rendida também após marcar um encontro amoroso pelo Tinder. Ao chegar por volta das 21h ao local combinado — na Avenida Dracena, no bairro do Jaguaré, na zona oeste de São Paulo —, o alvo do crime foi rendido por três homens armados. A vítima foi mantida até por volta das 20h do dia seguinte em um mesmo cativeiro, onde apareceram ainda outros três sequestradores. Ela teve o carro e cartões roubados, com os quais foram feitos pagamentos em benefício dos criminosos. A família do homem sequestrado ainda precisou fazer depósitos via Pix como resgate, antes que ele fosse liberto em Osasco, na região metropolitana.
No dia 23 de maio de 2022, a vítima foi à 1ª Delegacia de Polícia Antissequestro, na região central de São Paulo, onde lhe foram apresentadas fotos de várias pessoas. Uma deles é de um homem chamado Cleiton, que a vítima disse reconhecer como um dos sequestradores. Posteriormente, ao ser confrontado pela investigação, Cleiton apontou que Eduardo seria um de seus comparsas no crime, o “Playboy”, ao reconhecê-lo em uma foto dos arquivos da Polícia Civil — foi essa a denúncia que motivou a ida à casa do padeiro em 2 de setembro, quando foi preso em suposto flagrante.
A fotografia de Eduardo estava ali porque, em 2017, em função de uma suposta denúncia anônima, dois policiais civis foram à casa dele e o questionaram se ele mantinha no local uma arma de fogo de maneira irregular: ele assumiu que sim. O padeiro dispunha de um revólver com numeração raspada, que entendia ser necessário para a proteção da família e de seu comércio. Ainda à época, ele entregou o armamento às autoridades. Depois, foi condenado a prestar serviço comunitário por três anos e a pagar uma prestação pecuniária de dois salários-mínimos.
De volta a 2022, mas em 26 de setembro, após o carro da vítima do sequestro de maio já ter sido recuperado na zona oeste de São Paulo, em posse de um suspeito chamado Edson, ela retornou à sede policial, quando também afirmou, a partir de um reconhecimento fotográfico, que Eduardo seria o “Playboy”, um criminoso que lhe xingava e exigia senhas bancárias enquanto esteve no cativeiro.
Em 1º de dezembro daquele ano, ainda com Eduardo preso preventivamente pela segunda vez, ele foi então submetido a um reconhecimento pessoal, agora enfileirado ao lado de outros três homens. Cleiton destoou do que havia dito semanas antes e desta vez não o reconheceu, afirmando que o padeiro tinha o formato do rosto, a barba e a cor dos olhos diferentes das de seu comparsa.
Já a vítima disse que o padeiro era parecido com o “Playboy”, assumindo, no entanto, que, durante o sequestro, o criminoso se manteve de boné e com uma touca que cobria parte do rosto. Ela disse ainda que o timbre da voz e o sotaque do comerciante eram idênticos aos do sequestrador — durante o procedimento, contudo, Eduardo se manteve em silêncio, conforme afirma o advogado dele.
Os autos de reconhecimento pessoal lavrados pela Polícia Civil na ocasião não indicam se as regras do Código de Processo Penal e as recomendações do CNJ para o procedimento foram ou não cumpridas.
Eduardo e família mantêm pequena padaria na zona norte de São Paulo | Foto: Reprodução
Justiça mantém terceira prisão mesmo com novas provas
O padeiro foi solto então em 2 de dezembro de 2022, um dia após o reconhecimento pessoal. É com base nesse mesmo procedimento que ele voltou a ser preso no mês passado, pela terceira vez: o juiz Gerdinaldo Quichaba Costa, da 13ª Vara Criminal Central, acolheu um pedido do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e determinou a prisão preventiva de Eduardo e de outros seis homens.
Ainda em agosto, a defesa de Eduardo argumentou que o reconhecimento, como prova isolada, não poderia sustentar uma prisão preventiva, pedindo a soltura dele. Destacou que, desde 2022, não houve prova ou fato novo que indicasse risco ao processo caso o padeiro respondesse a ele em liberdade. Reforçou ainda que ele exerce atividade lícita comprovada e tem residência fixa.
Ainda assim, a juíza Erika Fernandes, da 13ª Vara Criminal Central, manteve a prisão, por entender que a gravidade dos crimes imputados a ele, o reconhecimento feito pela vítima e o fato de Eduardo já responder a um processo semelhante — em menção ao sequestro de setembro de 2022 — justificariam a medida contra o padeiro.
O advogado Alan Eder de Paula fez então um novo pedido, desta vez trazendo provas da inocência de Eduardo investigadas não pela polícia, mas pela esposa dele. Ela obteve, pelo celular do marido, uma linha do tempo do Google que mostra os locais onde ele esteve nas datas do sequestro de maio de 2022. O padeiro chegou em casa às 20h10 do dia 16 daquele mês, após levar pães para uma cliente — áudios e imagens trocados em uma conversa de WhatsApp também provam isso.
Já no dia 17, quando o sequestro ainda estaria em curso ao menos até as 20h, segundo a vítima, Eduardo saiu de casa logo cedo para trabalhar: isso é comprovado pela linha do tempo do celular, por diversas transferências via Pix de pequenos valores que ele recebeu, relativas às vendas de pães, e por relatos escritos a próprio punho por três clientes que testemunham em favor do padeiro — naquele dia, ele se manteve na zona norte, e não na zona oeste, trabalhando a bordo da moto, como sempre fez.
Mesmo com as novas provas levadas ao processo, a juíza Érica Aparecida Ribeiro Lopes e Navarro Rodrigues, também da 13ª Vara Criminal Central, manteve a prisão preventiva de Eduardo, em decisão do último dia 5 de setembro, reforçando, como tese da decisão, a gravidade dos crimes atribuídos a Eduardo — o STJ, instância máxima da Justiça no âmbito infraconstitucional, entende que a gravidade abstrata de um delito não pode, isoladamente, fundamentar a prisão cautelar de uma pessoa.
A defesa do padeiro também impetrou um habeas corpus em segunda instância, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que, em acórdão desta segunda-feira (15/9), negou a liberdade provisória a Eduardo. A relatora da decisão, a desembargadora Érika Mascarenhas, destacou entre as justificativas para isso o fato de o comerciante ser reincidente, citando o processo no qual foi condenado por ter uma arma de fogo irregular e o outro caso de sequestro pelo qual é acusado.
“[Isso] evidencia sua inaptidão para se manter afastado da prática delituosa, além de demonstrar a ineficácia das medidas cautelares diversas da prisão, que não se mostram adequadas para conter seu ímpeto criminoso ou garantir a ordem pública”, escreveu a magistrada. Ela foi acompanhada por votos dos desembargadores Christiano Jorge e Gilda Alves Barbosa Diodatti.
A relatora ainda afirmou que as alegações de inocência de Eduardo “demandam análise aprofundada do conjunto probatório a ser produzido na instrução criminal, providência que é própria da fase de julgamento do mérito da ação penal originária — sentença —, e não da via estreita do habeas corpus”. Ou seja, a linha do tempo do celular, as transferências via Pix e os relatos de clientes dele sequer foram analisados.
A família de Eduardo entende que poderia ter ainda mais provas da inocência dele nesse segundo processo caso conseguisse reaver o HD apreendido irregularmente pela Polícia Civil — até hoje ele não foi devolvido, assim como o dinheiro e demais itens levados em setembro de 2022.
Clientes atestaram com depoimento a próprio punho que Eduardo trabalha vendendo pães | Foto: Reprodução
Padeiro foi condenado em outro processo no dia da prisão preventiva
No mesmo dia em que foi preso preventivamente pela terceira vez, por conta do sequestro de maio de 2022, Eduardo ainda foi condenado no outro processo, relativo ao crime de setembro daquele ano. A juíza Adriana Costa, da 32ª Vara Criminal Central, entendeu, tendo como base o reconhecimento da vítima — que reforçou, em juízo, ser o comerciante um dos criminosos — e os relatos de policiais, estarem “cabalmente comprovadas autoria e materialidade delitivas”.
A investigação policial também levou ao processo duas fotos em que a mão de Eduardo aparece segurando um revólver dentro da casa dele. Os registros foram achados em um dos três celulares que a Polícia Civil apreendeu ilegalmente na residência do padeiro em setembro de 2022.
A defesa de Eduardo pediu que fosse feita uma perícia dos celulares, para mostrar que ele nunca fez contato com os réus com os quais é acusado de ter formado uma quadrilha. O próprio padeiro autorizou acesso aos dados telemáticos dos aparelhos. Ainda assim, a perícia não foi feita. A acusação nunca conseguiu provar se o comerciante teve ou não acesso ao dinheiro extorquido da vítima, se limitando afirmar que moradores de endereços no mesmo bairro foram beneficiários de transferências bancárias.
A condenação contra ele foi de 22 anos e dois meses de reclusão, em regime inicial fechado, além do pagamento de 40 dias-multa. Foi permitido a ele responder ao processo em liberdade, direito suprimido em razão da ordem de prisão preventiva no outro caso. A defesa de Eduardo tenta recorrer.