O ato de dividir alimentos com as divindades e os ancestrais está presente em inúmeras culturas. Ele manifesta-se no Brasil nos candomblés, mas ultrapassa os limites dos terreiros e rompe as fronteiras entre o sagrado e o profano. A comida de santo chegou às mesas com força suficiente para matar a nossa fome cotidiana e apimentar os paladares.
A importância dos alimentos nos rituais é vinculada ao significado do axé. Trata-se da energia vital presente em todas as coisas e pessoas. Para que tudo funcione a contento, o axé deve ser constantemente renovado. Nada acontece sem a reposição da força, em um mundo sujeito a constantes modificações. Uma das formas mais eficazes de dinamizar o axé em benefício de nossas vidas é dando comida aos ancestrais e aos deuses; que por sua vez retribuem a oferenda em forma de vontade de vida, propiciando benefícios aos que ofertaram.
Um alimento seminal das comunidades de terreiro é o padê de Exu. Mais que isso, o padê é um caminho para se pensar a própria cultura brasileira.
A mandioca foi domesticada pelos indígenas da América do Sul bem antes da invasão européia ao continente. Hoje, quem mais produz a farinha de mandioca no mundo é a Nigéria. A planta saiu daqui, cruzou o Atlântico e parou na costa africana.
Oriundo da África, o dendê e o seu azeite rubro têm registros de seu uso que ultrapassam 5 mil anos. No Brasil, o dendezeiro chegou junto com os povos escravizados e por aqui ficou.
O padê de Exu, a oferenda feita ao grande orixá mensageiro, tem como base exatamente a farinha de mandioca indígena que foi para a África e o azeite de dendê africano que veio para o Brasil.
Cultura é padê: encontro, fluxo, refluxo, encruzilhada, afetação, disponibilidade, acréscimo de força vital a partir daquilo que a princípio nos é estranho, interferência, profanação do sagrado e sacralização do profano, território em que o jogo não se estabelece contra o outro, mas com ele. A impuríssima força criadora!
O tupi deu a Exu a mandioca. Ao tupi, Exu deu o dendê. Umas vez misturados com as mãos que emulam o fazer dos dias no limiar dos tempos, já não podem mais se separar.
Todo padê é uma grande oferenda à beleza daquilo que movimenta o alguidar de barro em que o mundo inteiro cabe: o encontro mareado entre o óleo e a raiz.