Avisos para três tipos de pessoas:
Não leia este texto se você é excessivamente sensível.
Não leia este texto se você comemorou as mortes.
Não leia este texto se alguma gota daquele sangue corre nas suas veias.
Para as primeiras, certas informações são sentidas tão profundamente, que as fazem sofrer como se fosse na própria carne.
Para as segundas, cada nova notícia é uma espécie de gozo, sede, fome que precisa ser constantemente renovada e este singelo texto não dá conta de aplacar.
Para as terceiras, a dor é realmente na própria carne. É o mesmo que se enterrar vivo outra e outra vez, a cada novo texto. Não precisa.
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Pés azulados, inchados e intumescidos, mãos com unhas entranhadas de sangue e marcas de cordas, membros arrancados, cabeças decepadas, troncos crivados de balas em locais estratégicos que fazem martírio antes de deixar sem vida. Estes são os relatos de quem conseguiu olhar os corpos. A chacina do dia 28 de Outubro de 2025 escalou muitos degraus, subiu o sarrafo, alcançou estágios acima, elevou a temperatura não só da violência, mas do estado de vigilância e tensão em que naturalmente já vive o Estado do Rio de Janeiro.
Em um confronto bélico, em uma guerra, o que faz um soldado atirar? A eliminação do inimigo ou a autodefesa, mas … o que o faz ir mais longe, ou seja, torturar o seu oponente? Um ódio profundo e alimentado por dias, meses, anos, eras.
A primeira pergunta a ser feita neste tristíssimo episódio, é como chegamos nesta várzea da nossa trajetória como povo. Como conseguimos produzir tanta raiva, asco e repulsa, empurrando um naco gigantesco da população para uma beco, em que a saída é quase sempre portando uma arma quase maior que a sua altura e depois no rabecão, embalado em um saco preto, para choro e desespero de quem fica.
Algumas respostas temos, mas é assunto para outro texto. Voltando à mortandade de agora, os números falam em 128 mortos. Considerando que em um corpo adulto circula certa de 5 litros de sangue, isso significa cerca de 640 litros. Seiscentos e quarenta litros de sangue capazes de sustentar politicamente, imageticamente e financeiramente os que brindam e bebem essas hemácias. Há uma vampirização desses mortos, visto que ganhar eleição fazendo palanque em cima de caixão é uma tática velha no Brasil e no mundo.
Nos últimos três anos, o Rio de Janeiro viu quatro grandes chacinas. Em 2021 foram 28 mortos no Jacarezinho, em 2022 foram 16 no Complexo do Alemão e 23 na Vila Cruzeiro, e agora mais de uma centena na Penha e no Complexo do Alemão. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, que monitora a violência armada, desde a primeira posse do governador Cláudio Castro, em 2020, 890 pessoas foram mortas em chacinas policiais
Depois de um dia 28 de outubro feito de horror, estresse e tristeza, a população despertou com o sol iluminando uma rua de corpos enfileirados. Em dois mandatos, nada se moveu na vida da segurança pública da cidade. Apenas piorou. O método comprovadamente não funciona e segue sendo a única ação do poder constituído, logo, o objetivo não é resolver a segurança da população, mas dar vazão e continuidade aos ciclos de ódio.
É notório que o Comando Vermelho surgiu em um presídio, no contexto da ditadura civil-militar brasileira. Também é sabido que o Primeiro Comando da Capital, o famoso PCC, também nasceu dentro de uma penitenciária, depois do massacre do Carandiru, onde 111 presos foram assassinados. No caso do Outubro de Sangue, além das mortes, há mais de 80 presos. Considerando que penitenciárias são o berço de grandes facções, o que nascerá daí? Qual a serpente que estamos chocando agora? Como encerrar ciclos históricos, não só incompetentes para solucionar os problemas, mas produtores de mais e cada vez mais graves problemas?
Quem tem algum neurônio comunicante sentiu ainda mais medo, insegurança e pânico. Sabemos que estamos em uma noite cerrada da história, pois quando o medo se instala não há possibilidade de felicidade ou liberdade. Já disse a cantora estadunidense Nina Simone: “Liberdade é não ter medo”.
Por enquanto, liberdade é apenas uma pálida ideia abstrata, pois a realidade são 500 litros de sangue e a inglória tarefa de enterrar e desenterrar esperanças perdidas.
 
			        