Eu estava em Porto Alegre, participando da 70ª Feira do Livro, quando por mensagem no WhatsApp um dos meus editores, o Vagner Amaro da Editora Malê, me manda o áudio de um professor muito empolgado: “Caiu uma questão com o Água de barrela no Enem!” Imediatamente minhas redes sociais começaram a encher de marcações em posts de pessoas que eu nunca vi, mas que um dia leram o livro por iniciativa própria ou na escola, incentivadas por mestres e mestras.
Também surgiram postagens de professores estranhando a ausência de Machado de Assis, Clarice Lispector, Jorge Amado… e começou a eterna (e chatíssima) discussão sobre cânone literário, clássicos, não clássicos, etc, etc, etc. Todos os anos, entra governo e sai governo, o Exame Nacional do Ensino Médio incomoda neste ponto específico: A literatura.
Já aconteceu polêmica por conta do Bajubá ou Pajubá, a linguagem inventada e falada pela comunidade travesti e que ganhou a população em interjeições e gírias muito conhecidas. Já aconteceu discussão por conta de Carolina Maria de Jesus e sua escrita repleta das rasuras naturais de quem apenas cursou até o quarto ano do fundamental, mas cheia de originalidade, coragem, capacidade analítica e rico vocabulário. Já teve polêmica pela bibliografia recomendada. Enfim, todo ano um ponto que aumenta um conto no enredo de sempre.
O debate é aborrecido, porém necessário. Não nas bases rasas de posts na internet feitos para agradar esta ou aquela bolha e apitar para “cachorros” que escutam o chamado para o ódio disfarçado de análise, mas para ampliar o entendimento do que compõe a rica produção literária brasileira, suas contradições, tendências, pontos de contato, de choque e deslocamentos do status quo.
Passado o susto, fui olhar com cuidado a questão que trouxe um trecho do livro em que descrevo o universo do Recôncavo da Bahia, onde meus antepassados viveram e foram escravizados. Em um parágrafo, descrevi diversos tipos de cana de açúcar e outras culturas e, no seguinte, falei de quem verdadeiramente usufruía de tanta fartura, usando como metáfora os membros de uma realeza.
Não era uma questão exatamente sobre a “literatura de Eliana Alves Cruz”. Facilitou um pouco para quem leu o livro antes, mas não era preciso ter lido para acertar a questão, pois ela era sobre algo que é a raiz de muitos males da nossa contemporaneidade incluindo aí a temida exclusão no mercado de trabalho. Luta de classes? Também, mas, principalmente interpretação de texto.
Prezados e amados professores e professoras,
Não adianta ler clássicos ou contemporâneos se não ensinarem seus alunos a pensarem no que estão lendo. Este é o recado. Esta é a questão desde sempre. Esta é a base do que diz Paulo Freire que, apenas aqui, no país dele, é rejeitado adivinhem por quem? Pelos que jamais leem livro algum, seja ele clássico, contemporâneo ou livrinhos para colorir; pelos que pensam que Machado de Assis ou Clarice Lispector serão “esquecidos” porque deixaram de aparecer em uma ou outra edição do Enem. Só cogita esta possibilidade quem não consegue entender a beleza, a genialidade e o alcance destes autores, pois jamais os leu interpretando o que disseram e estão viciados em ensinar fórmulas para fazer alunos passarem no exame, mas nunca para “lerem” suas realidades interpretando-as criticamente.
Boa sorte a quem vai para o segundo round da luta: As provas de ciências e exatas. Leiam muito bem os enunciados, pois se não souberem interpretá-los, já sabem … Enem tem todo ano.
Como recado final, leiam. Foi bonito ver Marcelino Freire também citado e o tanto de jovens que se inspiraram em suas redações no livro “Velhos demais para morrer”, do Vinícius Neves Mariano, ou “Velhos”, de Alê Mota.
Machado e Clarice se orgulhariam. Podem acreditar.