Casa EconomiaOPINIÃO: Choque, horror e morte – o Estado de exceção necroliberal

OPINIÃO: Choque, horror e morte – o Estado de exceção necroliberal

por Amanda Prado
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As chacinas que se repetem nas favelas do Rio de Janeiro — Jacarezinho, Alemão, Penha — não são “operações mal conduzidas”. São o produto de uma engrenagem de poder que governa pelo medo e pela morte.

Como analisa Naomi Klein, em A Doutrina do Choque, o neoliberalismo avança explorando o trauma coletivo. Cada crise — real ou fabricada — serve para impor cortes, repressão e retrocessos. No Brasil, o “choque” não é apenas econômico: é policial. Cada operação letal funciona como espetáculo de autoridade e instrumento de anestesia social.

A crescente supressão de direitos da maioria segue até o patamar em que quase todos os recursos são concentrados em uma minoria, que, para manter o seu privilégio, como sustentou Viviane Forrester, recorre à eliminação física dos mais pobres, o que a autora francesa denominou de horror econômico, com o consequente medo da inutilidade, da exclusão e da fome. A precariedade é usada como método de controle. O desemprego e a miséria disciplinam corpos e silenciamentos.

Achilles Mbembe chamou esse processo de necropolítica: o poder de administrar a morte. No Brasil, esse poder tem cor e classe. O jovem negro da periferia é o homo sacer contemporâneo — aquele que pode ser eliminado sem que sua morte seja crime. As chacinas são métodos de governo, não desvios de conduta.

Essa política do terror encontra sua tradução teórica em Giorgio Agamben, para quem o Estado moderno conserva o poder de suspender a lei e direitos em nome da própria lei. Nas favelas, a exceção é regra: a Constituição de 1988 não chega, e o Estado atua como soberano absoluto, decidindo sobre quem vive e quem morre. É o estado de exceção permanente.

Esse terror cotidiano é institucionalizado pela austeridade seletiva, a que já aludimos, com Estado cortando políticas sociais em nome da “responsabilidade fiscal”, mas preservando subsídios e privilégios financeiros. É o complemento econômico da necropolítica: o mesmo Estado que mata nas favelas nega, no orçamento, o direito à vida digna.

No plano internacional, o discurso do narcoterrorismo, difundido por Donald Trump, reforça essa lógica, sob a perspectiva de supressão da soberania. Ao redefinir o tráfico como terrorismo, os Estados Unidos legitimam intervenções na América Latina e exportam sua geopolítica do medo. No Brasil, essa retórica, utilizada por governos estaduais de extrema-direita, se alinha à política dos EUA, para a América Latina, pavimentando a intervenção militar norte-americana por aqui, sob pretexto de combater o narcoterrorismo.

Tudo isso compõe o que podemos chamar de Estado de Exceção Necroliberal: um regime que corta, mata e culpa. Um Estado que substitui o direito pela austeridade, a política pela bala e a cidadania pela submissão.

A saída, contudo, não está em mais repressão ou mais cortes, mas na reconstrução do Estado Social, que amplia direitos em vez de suprimi-los. É preciso romper com a austeridade seletiva e recolocar o orçamento público a serviço da cidadania, não do rentismo.

Até para uma ação duradoura de combate ao crime organizado, que vá além da morte dos facilmente substituíveis soldados do tráfego na favela e atinja o coração financeiro do crime, não basta a recuperação dos territórios, mas uma ação firme no Estado para conferir cidadania aos moradores hoje subjugados pelo criminosos.

Deste modo, o Estado Social é o antídoto à necropolítica: reconhece o valor da vida, substitui o medo pela solidariedade e o choque pela justiça. Só assim a democracia brasileira deixará de ser um ritual vazio e voltará a ser um projeto de civilização.

*Ricardo Lodi Ribeiro é professor de direito financeiro da UERJ, onde foi reitor e diretor da faculdade de direito.

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