Casa EconomiaMeio século depois, história de Vladimir Herzog ganha novas vozes em documentário e podcast

Meio século depois, história de Vladimir Herzog ganha novas vozes em documentário e podcast

por Schirlei Alves
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Por Schirlei Alves

Cinquenta anos após o assassinato de Vladimir Herzog, a memória do jornalista é celebrada e recontada em linguagem audiovisual por familiares, amigos e testemunhas de um dos crimes mais bárbaros da ditadura militar no Brasil.

O documentário “50 anos de Vlado”, uma produção original do Instituto Conhecimento Liberta (ICL) com apoio do Instituto Vladimir Herzog, tem direção e roteiro de Antônio Farinaci. Já o podcast “O caso Herzog: a foto e a farsa” é uma produção original do Instituto Vladimir Herzog, produzido pela NAV Reportagens em parceria com o ICL e apresentado por Camilo Vannuchi.

A foto do suicídio forjado de Vlado, como era carinhosamente chamado pelos familiares  e amigos, se tornou uma das imagens mais simbólicas dos tempos sombrios da ditadura. Ela expôs a farsa montada pelos carrascos para encobrir a tortura e o assassinato do jornalista, o que gerou grande comoção e aumentou a resistência ao regime.

O registro foi feito em 25 de outubro de 1975, no DOI-Codi de São Paulo, pelo fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, que na época era aluno do curso de fotografia forense da Academia de Polícia Civil e foi conduzido, aos 22 anos, pelos policiais para fotografar a cena.

A foto mostra Herzog com o pescoço amarrado a uma grade da cela, com um cinto que não era dele, enquanto os joelhos estavam dobrados e os pés arrastando ao chão. Essa posição incomum foi percebida como uma evidência da farsa, já que indicava que não se tratava de um suicídio real.

O assassinato do então diretor de jornalismo da TV Cultura, que, na época, era uma emissora públical, e também professor na Escola de Comunicações e Artes da USP, gerou forte comoção e revolta, o que fez com que cerca de oito mil pessoas se reuníssem na celebração ecumênica que ocorreu na Catedral da Sé, em São Paulo, em 31 de outubro de 1975, cercados por forte aparato militar e ameaça de “banho de sangue”, caso houvessem manifestações para além do culto.

“Quando entrei na catedral e vi que não havia lugar nem para um fósforo, eu me enchi de esperança em favor do povo brasileiro”, disse o arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, em imagens resgatadas pelo documentário. O arcebispo morreu em 2016, aos 95 anos.

O diretor do documentário, Antônio Farinaci, acrescenta que manter viva a lembrança desse período é essencial para que o país não volte a repetir seus erros, especialmente depois de estarmos à beira de uma nova tentativa de golpe, com os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 e as descobertas das investigações que culminaram nos recentes julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF).

“É importante a gente sempre trazer de volta essas histórias, né? Para que as pessoas lembrem da violência e do terror que foi esse período. Que não foi uma coisa que passou e que está lá atrás. É uma coisa que, vira e mexe, tenta voltar. Eu acho que lembrar essas histórias e a luta pela democracia e pelos direitos humanos não é uma coisa que a gente pode se dar por vencida, porque a gente acabou de ver o que pode acontecer.”

A repercussão do caso, impulsionada em parte pela divulgação da foto, contribuiu para o desgaste do regime e foi um marco importante na luta pelos direitos humanos no Brasil.

Vladimir Herzog – Foto: Reprodução Documentário 50 anos de Vlado

“Alcançar público mais jovem”

Camilo Vannuchi, apresentador e pesquisador do podcast, explica que a ideia de produzir o material nasceu da urgência de atualizar a história para novas gerações.

“Faz 50 anos do assassinato do Vladimir Herzog e a gente quis fazer uma plataforma de podcast pra contar essa história. É algo que o Instituto Vladimir Herzog e eu já temos feito em outros trabalhos: alcançar um público mais jovem, que não viveu a ditadura e sabe muito pouco sobre o que aconteceu.”

O jornalista apostou em uma narrativa sonora envolvente, que mistura reportagem e dramaturgia com sons fidedignos aos da época, como o barulho da máquina de escrever e da Perua C14, usada pela polícia durante a ditadura militar.

A partir da reconstrução do dia em que o fotógrafo Silvaldo Leung, registrou a cena do suposto suicídio de Herzog, o podcast refaz a linha do tempo da farsa.

“Ele tinha duas semanas na polícia quando fotografou o Herzog. Ficou lá até 1978, trabalhando com fotografia forense. Era um cara muito jovem, num momento de fragilidade. Cumpriu uma ordem num contexto de repressão. Não dá pra exigir que todo mundo fosse herói.”

Reencontro carregado de desconforto

O jornalista Camilo Vannuchi se encontrou pessoalmente com o fotógrafo. Quase meio século depois, os dois voltaram juntos ao prédio que abrigou o DOI-Codi de São Paulo. Lá, Silvaldo revisitou a sala onde fez as fotos em 1975 e reviveu, passo a passo, a noite em que registrou a cena. Segundo Camilo, o reencontro foi carregado de desconforto.

Além da investigação sobre a imagem, o podcast resgata documentos e áudios inéditos que mostram como a desinformação foi usada pela ditadura para fabricar versões oficiais. A semelhança com a atualidade não é mera coincidência.

“Aquilo lá foi um gabinete do ódio”, diz Camilo sobre o contexto histórico em que colunistas conservadores e deputados replicaram a ideia de que a TV Cultura havia sido tomada pela “ameaça comunista” e “vietnamização”, o popular medo de “virar uma venezuela” que os atuais seguidores da extrema direita proliferam.

“Eu até falo isso na narração. Foi uma campanha de desinformação de extrema direita, de ódio e de perseguição política.”

“É um pouco de uma ideia de você não colocar freios, não colocar limites. Onde podem chegar essas campanhas de ódio, de desinformação, muito virulentas? Que você escolhe uma pessoa, um grupo ou um canal e começa a dizer o que estão fazendo e como, de repente, aquilo vira um caso de polícia e tortura. Porque não foi só o Herzog que foi torturado [outros jornalistas também foram]”

Clarice e Vlado – Foto: Reprodução documentário 50 anos de Vlado

O papel de Clarice e a importância da memória

O documentário dirigido por Antônio Farinaci aposta em recursos visuais para potencializar o impacto dos depoimentos. “A gente escolheu contar essa história de uma maneira nova, usou muitos elementos gráficos, que foi a ilustradora Paula Villar quem fez, que tem um trabalho super bonito e que ajuda a contar essa história”, explicou.

Para Farinaci, a importância de revisitar o caso Herzog vai além do registro histórico, é também um alerta político.

“Eu acho que todas essas histórias de sequestro, tortura, morte e prisões arbitrárias precisam sempre ser relembradas porque, vira e mexe, elas teimam em reaparecer. A gente está vendo um julgamento aí acontecer por uma tentativa de golpe que se tivesse de fato ocorrido, muito possivelmente a gente não estaria tendo essa conversa agora”.

Nesse contexto, o diretor ressalta o papel decisivo de Clarice Herzog, viúva de Vladimir. “A Clarice teve um papel muito importante, porque ela teve a consciência de que esse caso representava muitos outros e que não podia ser silenciado, era preciso buscar a responsabilização do Estado”.

Embora o Estado tenha reconhecido o assassinato de Vladimir Herzog, os carrascos nunca responderam por seus atos.

Ambas as produções se unem em torno de uma mesma convicção: sem memória, não há democracia.

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