Por João Antonio da Silva Filho*
O medo é uma emoção fundamental, inscrita na biologia humana como mecanismo de sobrevivência. Ele se manifesta diante de uma ameaça — real ou percebida — e prepara o indivíduo para reagir, seja pela luta, seja pela fuga. Essa resposta não é apenas fisiológica, marcada por sintomas como taquicardia ou suor frio; ela também é psicológica e moral, mobilizando atenção e vigilância diante de determinadas circunstâncias. O medo, nesse sentido, é indispensável à prudência e ao instinto de autopreservação.
Mas o medo, assim como a vergonha, é mais do que uma reação biológica. Ambos se transformaram, ao longo da história, em instrumentos sociais de contenção de impulsos. Recordo-me dos conselhos de meu pai: “nunca perca o medo ou a vergonha”. De fato, são sentimentos que disciplinam a conduta. O medo da repressão do Estado, o temor do castigo divino, a vergonha de expor os próprios erros perante os outros, o receio do julgamento moral da sociedade — todos esses freios contribuem para moldar comportamentos, limitar os instintos mais agressivos e favorecer a convivência coletiva.
A história demonstra, no entanto, que o medo sempre foi explorado por regimes autoritários como instrumento de dominação social. Autocratas recorreram à coerção, à violência e ao aparato militar para prolongar o poder e silenciar dissensos. No século 20, tanto regimes que se autoproclamaram de esquerda quanto ditaduras de direita utilizaram o poder do Estado para cultivar uma cultura do medo, sustentada por perseguições políticas, censura, tortura e supressão de liberdades. O medo era o cimento que unificava massas sob a obediência forçada, legitimando governantes pela intimidação e pela sensação de vigilância permanente.
Esse mecanismo não desapareceu: permanece atual e visível. No presente, setores da extrema-direita, no Brasil e no mundo, fazem uso recorrente desse expediente, explorando inseguranças sociais, ameaças difusas e discursos de ódio como ferramentas de manipulação política. Alimentam a sensação de perigo constante — seja do “inimigo interno”, seja de grupos minoritários transformados em bodes expiatórios — para mobilizar apoio popular e enfraquecer instituições democráticas. Nessa lógica, o medo não é apenas emoção: converte-se em arma, em narrativa estratégica de controle social.
A vergonha, por sua vez, desempenha outro papel. Em muitos contextos, revelou-se um freio moral relevante, especialmente no combate à corrupção. Quem deseja ver sua reputação manchada por acusações de condutas reprováveis? O simples receio da reprovação social já se mostra, muitas vezes, suficiente para inibir práticas ilícitas. No entanto, também aqui há um paradoxo. A vergonha pode ser virtude pedagógica, traduzindo-se em humildade e autorregulação; mas pode igualmente resvalar para a humilhação, a servidão e a submissão.
Se medo e vergonha, em doses adequadas, funcionam como forças civilizatórias, capazes de refrear os instintos destrutivos e sustentar o respeito mútuo, em excesso tornam-se algemas invisíveis. Quando hipertrofiados, deixam de ser aliados da prudência e convertem-se em barreiras ao desenvolvimento humano. Quantas ideias não são sufocadas pelo receio da crítica? Quantos projetos deixam de nascer pelo temor do fracasso? Quantos talentos permanecem ocultos pela vergonha de se expor? O medo que protege pode, em excesso, paralisar; a vergonha que educa pode, quando desmedida, inibir a criatividade e a liberdade.
É nesse equilíbrio delicado que se organiza a vida em sociedade. O problema não está na existência do medo e da vergonha, mas no uso que deles se faz — seja pelo indivíduo, seja pelos sistemas de poder. Regimes autocráticos tendem a hipertrofiar o medo, ao passo que sociedades mais democráticas buscam convertê-lo em prudência responsável. Do mesmo modo, comunidades que valorizam a ética transformam a vergonha em correção civilizatória, enquanto culturas de submissão a degradam em instrumento de opressão.
O desafio, portanto, é lidar com esses sentimentos de forma crítica e consciente. É necessário discernir quando o medo se converte em prudência legítima — permitindo avaliar riscos reais e agir com ponderação — e quando degenera em covardia paralisante, impedindo-nos de defender a pluralidade e os avanços civilizatórios. Do mesmo modo, é preciso reconhecer quando a vergonha opera como bússola moral e quando se degrada em instrumento de submissão que cala vozes e sufoca potencialidades.
Sociedades verdadeiramente democráticas cultivam o medo como prudência responsável, não como terror; transformam a vergonha em senso ético, jamais em humilhação. Dessa lucidez depende não apenas a construção de vidas mais plenas e autônomas, mas a sustentação de um projeto civilizatório que valorize a dignidade humana, a liberdade e a justiça social.
* Mestre em filosofia do direito e doutor em direito público, conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice-presidente da Atricon