A eleição de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York não foi apenas uma notícia. Foi recebida como um terremoto no epicentro do capitalismo global, um evento que desafiou as convenções e expôs as fissuras de um sistema político (sempre) em crise. A ascensão de um jovem de 34 anos, imigrante de Uganda, muçulmano e autodeclarado socialista democrático ao comando da cidade que abriga Wall Street soou, para muitos, como um roteiro de ficção. No entanto, sua vitória não foi um acaso do destino, mas o resultado de uma década de organização de base, uma campanha digitalmente brilhante e um profundo desencanto popular com o status quo. A surpresa inicial, estampada nos rostos do establishment, rapidamente deu lugar a uma pergunta geral: como isso pôde acontecer?
Contudo, digamos que a trajetória de Mamdani é, em si, uma narrativa um tanto nova-iorquina dos séculos XX e XXI. Há nele um certo berço cultural típico do acúmulo de vida material da ainda sede do capitalismo mundial, New York. Como dizem os que conhecem bem a cidade: Nova Iorque é e não é como o restante dos EUA. Filho do renomado acadêmico Mahmood Mamdani e da cineasta Mira Nair, ele chegou à cidade aos sete anos, vindo de uma infância entre Kampala e a Cidade do Cabo. Educado na prestigiosa Bronx High School of Science, sua jornada “pré-política” incluiu um período como conselheiro habitacional e uma breve, porém notória, carreira como rapper sob o pseudônimo de “Mr. Cardamom”. Seus oponentes, desesperados, tentaram usar seu passado artístico contra ele, exibindo clipes de seu vídeo “Nani” como prova de sua falta de seriedade. A estratégia falhou espetacularmente.
Em vez de parecer inexperiente, Mamdani projetou uma imagem de autenticidade e conexão cultural que ressoou com a diversidade da cidade. Sua campanha foi uma aula de comunicação moderna: vídeos virais como o que abordava a “halal-flation” (a inflação dos preços da comida de rua halal), produção constante de conteúdo em múltiplos idiomas (Urdu, sua língua nativa, além de Bangla, espanhol e árabe) e uma presença carismática que contrastava brutalmente com a rigidez de seus adversários. Ele não apenas falava sobre a crise de acessibilidade; ele a vivenciava com os eleitores, entrevistando apoiadores de Trump que se sentiam abandonados economicamente e visitando taxistas imigrantes à meia-noite para ouvir suas queixas, dizendo-lhes que “sem o turno da noite, não há manhã”.
Mas o carisma e a fluência digital não explicam sozinhos como um socialista pôde vencer na capital financeira do mundo. A resposta, como apontado pela revista Jacobin, está no trabalho paciente e metódico dos Socialistas Democráticos da América (DSA). A vitória de Mamdani não foi um evento isolado, mas o ápice de uma estratégia de longo prazo. Por uma década, o capítulo de Nova York do DSA esteve nas “trincheiras”, elegendo candidatos para conselhos municipais e para a legislatura estadual, construindo credibilidade, capacidade organizacional e, crucialmente, formando quadros como o próprio Mamdani. A campanha mobilizou um exército de 90.000 voluntários, não como meros fãs, mas como co-organizadores de um projeto coletivo. Esse ethos de participação em massa preencheu um vácuo existencial na política contemporânea, oferecendo a milhares de pessoas não apenas esperança, mas uma forma concreta de trabalhar por ela. O socialismo de Mamdani, portanto, não era uma abstração ideológica, mas uma prática política visível, ancorada em uma comunidade de militantes que batiam de porta em porta, construindo um poder que o dinheiro dos bilionários não conseguiu comprar.
Essa máquina de base encontrou um terreno fértil na falência dos administradores de sempre. Seus oponentes eram caricaturas da decadência política: o ex-governador Andrew Cuomo, um “nepo baby” desgraçado por escândalos sexuais e financiado por bilionários, e o controvertido e conservador republicano Curtis Sliwa. A insistência dos analistas centristas de que os democratas precisavam moderar sua mensagem para vencer provou-se brutalmente equivocada. Os eleitores não estavam cansados do “extremismo”, estavam exaustos de um status quo que, em uma cidade com um milionário para cada 24 residentes e uma pessoa na pobreza para cada quatro, simplesmente não funciona. Mamdani não ofereceu moderação, mas sim uma alternativa básica e bem posicionada do socialismo histórico: creche universal, ônibus gratuitos e congelamento de aluguéis, tudo financiado pela taxação dos ricos. Sua recusa em se vender a interesses corporativos e sua corajosa defesa dos direitos palestinos — inicialmente vista como seu maior passivo — tornaram-se selos de sua autenticidade, um sinal para um eleitorado farto de mentiras e evasivas de que ele, de fato, falava sério.
Inevitavelmente, a vitória de Mamdani o colocou em rota de colisão direta com Donald Trump. O então presidente, ele mesmo um produto de Nova York, não perdeu tempo em rotulá-lo de “comunista” e ameaçar cortar fundos federais para a cidade. Em um movimento que expôs a estranha convergência de interesses da elite, Trump chegou a endossar o democrata caído, Andrew Cuomo, contra Mamdani. A resposta do prefeito eleito foi imediata e desafiadora. Em seu discurso de vitória, com uma mensagem direta para Trump, ele declarou: “Eu sei que você está assistindo, aumente o volume”. Mais tarde, ele desmantelou a ameaça presidencial, afirmando que ela “é uma ameaça. Não é a lei”, e que os fundos federais não são um presente de Trump, mas algo que “nos é devido”. Com isso, Mamdani não apenas venceu uma eleição municipal, ele se posicionou como uma figura nacional, um antagonista direto do trumpismo, argumentando que a melhor maneira de derrotar um déspota é “desmantelando as próprias condições que lhe permitiram acumular poder”.
Agora, a questão que paira sobre a cidade é se essa vitória sísmica se traduzirá em mudança estrutural ou se será apenas um paliativo, tornando a desigualdade da cidade um pouco mais palatável. Os desafios são monumentais. A governadora democrata, Kathy Hochul, já sinalizou oposição aos aumentos de impostos necessários para financiar sua ambiciosa agenda. O establishment corporativo e financeiro, que ele tanto criticou, continua a ser a força dominante na economia da cidade. A história recente oferece um conto de advertência: Bill de Blasio também foi eleito em 2013 com uma plataforma de combate à desigualdade, apenas para deixar o cargo oito anos depois, amplamente impopular e com um legado misto, frustrado pelos limites do poder municipal. A vitória eleitoral de Mamdani, impulsionada por uma força militante impressionante, revelou uma disparidade crucial: sua influência eleitoral ultrapassou em muito a força organizada da esquerda nos locais de trabalho e nos bairros. A tarefa hercúlea que ele enfrenta agora é usar o poder simbólico da prefeitura para fazer a engenharia reversa de um movimento da classe trabalhadora que seja poderoso o suficiente para sustentar sua agenda contra a inevitável reação. A batalha de Zohran Mamdani apenas começou. Sua vitória deu esperança a uma parcela da nação que dela necessitava desesperadamente, mas, como o socialista americano Victor Berger observou há mais de um século, para conseguir um mundo melhor, “teremos que trabalhar por ele e lutar por ele”.
Além disso, outra pergunta paira no horizonte: a vida material e simbólica nova iorquina vai abrir mão de um glamour que, no fim das contas, é hierarquizante tanto lá quanto nas franjas do império americano? Uma coisa é certa naquela selva de pedra que nunca dorme: não basta ouvir ou cantar “Empire State of Mind” (JAY-Z, Alicia Keys) para mudar o mundo.
In New York (ayy, aha)
Concrete jungle (yeah) where dreams are made of
There’s nothin’ you can’t do (yeah)
Now you’re in New York (aha, aha, aha)
These streets will make you feel brand-new (new)
Big lights will inspire you (come on)