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Mães de assassinados pela PM e familiares de presos denunciam ‘Brasil da chacina’ em SP

por Gabriel Anjos
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Por Pedro Stropasolas – Brasil de Fato

‘O Brasil é a chacina’. Essa foi a mensagem exposta no painel “Quantos mais têm que morrer para essa guerra acabar? – do Carandiru ao Massacre da Penha”, durante a programação deste sábado (8) do Festival Antirracista de Cultura e Resistência, no Galpão Elza Soares, em São Paulo.

Em meio à comoção e revolta pelo recente massacre nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que deixou 121 mortos, mães, familiares de presos, parlamentares e representantes de organizações do movimento negro denunciaram que a naturalização de chacinas de corpos negros no Brasil é parte de um projeto de poder estruturado desde o período da escravidão.

“O debate não é se foi operação ou se foi chacina. O Brasil é a chacina há mais de 500 anos”, enfatizou Fábio Pereira, da Amparar, uma organização criada em 1997 por mães que se uniram para enfrentar torturas e abusos cometidos contra seus filhos na antiga Febem (atual Fundação Casa), em São Paulo.

Além dele, o painel conduzido pela deputada federal Talíria Perrone (Psol-RJ) e pela codeputada estadual da Bancada Feminista ( Psol- SP) Paula Nunes reuniu Beatriz Rosa, a mãe do menino Ryan, morto durante ação policial na Baixada Santista, no litoral de São Paulo; Bárbara Quirino, do Projeto Vidas Carcerárias Importam; o advogado Joel Luiz, do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN); e Débora Maria, fundadora do Movimento Mães de Maio.

‘Estado Democrático das Chacinas’

As falas exaltaram a presença dos movimentos de mães e de familiares de pessoas presas, que foram alvo direto de criminalização e desumanização por parte da extrema direita e das estruturas do Estado após a chacina no Complexo da Penha e do Alemão no último dia 28 de outubro.

Debora Maria, fundadora do Movimento Mães de Maio, destacou que o povo brasileiro vive hoje em um “Estado democrático da chacina”. “Que estado democrático é esse que nos temos? A favela e a periferia nunca viram essa democracia. Eles dão pena de morte, e não são punidos”, afirmou.

A mãe de uma das 509 vítimas da polícia durante os Crimes de Maio de 2006 denunciou a repetição de massacres sem responsabilização do Estado, alertando para o que pode acontecer no Rio de Janeiro.

“É revoltante ver tudo sendo arquivado: o caso do Ryan, o caso do meu marido, o caso de 84 pessoas. Não podemos deixar que o genocídio na Penha e no Alemão seja arquivado também”, disse. ‘É a caneta do doutor a que mais assassina’, completou.

Já Beatriz Rosa descreveu o cotidiano de dor que não termina desde a morte do seu filho Ryan, de 4 anos, atingido por um tiro de um policial militar no morro São Bento, em Santos, em 5 de novembro de 2024. “A gente não faz um filho para ser morto na mão da polícia. Não mataram só duas pessoas da minha famílias, morreram quatro. Duas pela polícia, duas psicologicamente. Estou com duas crianças que os sonhos foram mortos”, descreveu a mãe.

Rosa contou que sua filha de oito anos não consegue mais brincar, pois em cada gesto sente a ausência do irmão. Já o filho João Pedro, de 11 anos, vive dominado pelo medo, sem vontade de ir à escola. “Ele pergunta: ‘Mãe, por que mataram meu irmão?’. Ele só tinha 4 anos. Como que eu vou responder para uma criança dessa?”, questionou ela.

“O Ryan trocou tiro para ser morto? Não, o Ryan não trocou tiro. Ele mal conseguia segurar uma arma de brinquedo, quanto mais uma de verdade. Então, a gente tem que continuar lutando para que essa guerra acabe”, completou a mãe, emocionada.

Ao consolar a companheira, Débora Maria destacou com o movimento de mães vítimas do Estado é o que mais cresce no Brasil. “Está muito organizado para parir um novo Brasil, porque não parimos nossos filhos para o estado tirar”, reforçou. “A gente nunca teve tempo de ter medo, porque não tivemos tempo de ter luto. Eles globalizam a nossa morte, e nós globalizamos a nossa luta”, completou Maria.

As mães resistem

Ao ouvir os relatos, a deputada Talíria Petrone enfatizou como as mães dos mortos nas chacinas da Penha do Alemão sofreram violações no processo de reconhecimentos dos corpos.

“Pela manhã, a gente esteve no Complexo da Penha. À tarde, fomos ao IML [Instituto Médico Legal], e aí o desespero foi ainda maior, porque as mães não tinham acesso ao corpo dos seus filhos. Fomos recebidos pelo diretor do IML e pela diretora da Polícia Científica. Ele até tentou ser acolhedor, mas ela… um poço de frieza. Falava da identificação dos corpos usando o termo: ‘‘deu match’. Foi chocante’, disse. “No final, nós nos levantamos, porque não fazia mais sentido permanecer ali”, completou Petrone.

A parlamentar acredita que está entranhado no Estado um impulso de responsabilizar e criminalizar justamente as mães. “Quero abraçar cada mãe que transforma o luto em luta e resistência, porque depois que o Estado arranca um filho, não existe outra escolha possível. É preciso repudiar esse horror da criminalização e da revitimização dessas famílias, algo que está, infelizmente, arraigado nas estruturas do Estado. Como mãe de dois, ouvir esses relatos é devastador e revela a enorme tarefa que temos pela frente”, compartilhou Petrone.

Protesto contra a operação policial que deixou dezenas pessoas mortas no Complexo da Penha, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Estado | Fernando Frazão/Agência Brasil

Na mesma linha, a deputada Paula Nunes destacou que a grandeza dos movimentos de mães que lutam contra a violência de Estado está justamente em colocar suas vidas em risco para impedir que outras famílias passem pelo mesmo trauma.

“Elas emprestam o corpo, a saúde e a dor delas para o fortalecimento de uma luta, para que nunca mais uma mãe tenha que viver o que elas viveram”, destacou Nunes.

A codeputada também defendeu a urgência de políticas públicas voltadas ao acolhimento dessas mães, ressaltando que o Estado não pode seguir promovendo operações letais sem oferecer qualquer suporte às famílias destruídas pela violência. “Não pode ser que o Estado execute filhos dessas mães e não haja nenhum tipo de política pública para acolhê-las. É fundamental que a gente lute por isso”, revelou.

Um novo imaginário político


Segundo Fábio Pereira, da Amparar, retomar as histórias dos massacres e da resistência do povo negro a essa brutalidade é fundamental para reconstruir um imaginário político capaz de afirmar a vida onde o Estado insiste em produzir morte.

Ao lado das mães, ele destacou que a resistência nasce justamente onde o Estado produz destruição. Ele descreve os movimentos ali presentes como trincheiras vivas. “Essas mulheres são guardiãs da vida. Isso é muito gigante. Não é qualquer coisa”, refletiu.

“Quando as mães que estavam nos tumbeiros depositavam seus filhos no mar para que eles não vivessem a experiência da escravização, esse é o maior projeto de liberdade que a gente pode sonhar”, completou Pereira.

O representante da Amparar lembrou que mesmo diante de séculos de violência, o povo negro continua encontrando caminhos para existir e resistir. “A gente é esse rio que não vai parar de brotar, e toda vez que ele transita, toda vez que ele formula a passagem dele por diversos outros lugares, ele se modifica”, disse.

Segundo Pereira, apesar do cansaço de “carregar mortos”, os sobreviventes da violência estatal seguem formulando novas perspectivas de vida onde o povo negro não seja visto como um alvo permanente, e sim como um sujeito coletivo. “Eles não conseguem matar quando a gente é uma parte. A gente é um espelho quebrado, espalhado por muitos lugares”, afirmou.

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