Casa EconomiaLetalidade policial em SP recua, mas segue pior do que patamar anterior a Tarcísio

Letalidade policial em SP recua, mas segue pior do que patamar anterior a Tarcísio

por Felipe Rabioglio
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Por Paulo Batistella – Ponte Jornalismo

Aos 39 anos, Luis Carlos de Souza se tornou uma linha em uma planilha da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). O homem aparece agora em uma tabela disponibilizada pela SSP-SP e atualizada a cada fim de mês sobre o que a pasta chama de “mortes decorrentes de intervenção policial”. Em uma versão mais recente do arquivo, tornada pública esta semana, consta que 69 pessoas foram mortas pelas polícias no estado em agosto deste ano. Um dos casos é do dia 23 daquele mês, ocorrido na Avenida Presidente Castelo Branco, na cidade de São Paulo.

A linha da planilha que sinaliza essa ocorrência registra também que a vítima era do gênero masculino e foi morta pela Polícia Militar paulista (PM-SP). Nos campos da tabela dedicados à idade, data de nascimento e profissão do homem morto, aparece apenas “NULL” — código que indica que não foram preenchidas ali quaisquer informações. A SSP-SP aparenta não saber quem era a pessoa assassinada.

A vítima desconhecida do arquivo do Estado é Luis Carlos, que a Ponte conseguiu identificar ainda em agosto deste ano, quando familiares e amigos protestaram por seu assassinato — que não chamam de morte decorrente de intervenção policial, mas de execução.

Ele nasceu em Porto Velho (RO), era filho de Adila Souza e pai de um menino de três anos. Ficou conhecido por trabalhar com a instalação de som automotivo, mas estava agora desempregado. Morava no Bom Retiro, na região central da capital paulista, e foi morto em uma comunidade do bairro, o Parque do Gato, onde era querido por moradores e apelidado de “Chuka”.

Luis foi morto pela PM-SP nos fundos da comunidade do Parque do Gato, em São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

Na ocasião em que foi morto, Luis estava com outras pessoas nos fundos da comunidade — o Parque do Gato engloba um conjunto habitacional de prédios próximo à Avenida do Estado cercado por uma pequena favela, limitada pelo Rio Tamanduateí.

Os policiais militares Marco Antonio Manuel e Willian Firmino Seffrin teriam chegado ao local já atirando, quando a vítima correu para debaixo de um viaduto da Marginal Tietê que atravessa o rio e acabou atingida. Os PMs alegaram que Luis teria apontado um revólver para eles e, assim, “reviradam a injusta agressão”. A mãe da vítima diz que essa versão é mentirosa e que o filho nunca tocou em arma de fogo.

Na ocasião da morte, ele não carregava nem documentos pessoais — o que o fez se somar na planilha da SSP-SP, com dados reunidos desde 2013, a outras 2.232 pessoas igualmente mortas pelas polícias no período sobre as quais o Estado sequer registra a data de nascimento.

Letalidade policial no estado de SP

Perfil de Luis é semelhante aos de outros casos

Assim como Luis, todas as pessoas mortas pelas polícias paulistas em agosto deste ano eram homens. Em maior parte, eram negros (55%), de pele parda (31 deles) ou preta (oito). As vítimas tinham idades entre 15 e 72 anos, sendo jovens em maior parte — 44 delas estavam na faixa etária de 20 a 40 anos.

“Infelizmente, esse é o perfil padrão que permeia a atuação dos órgãos repressivos do Estado desde sempre. É o inimigo padrão a ser combatido. Existe um viés de classe social e um viés racial que norteiam a atuação dos órgãos de segurança, o que a gente pode creditar também ao racismo estrutural do Estado brasileiro”, avalia o tenente-coronel reformado da PM-SP Adilson Paes de Souza, que é também pós-doutor em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares (Escrituras, 2013).

Mortes pelas polícias no estado de SP de janeiro a agosto

A maioria dos casos de agosto deste ano também ocorreu na cidade de São Paulo (26 deles) e foi protagonizada pela PM-SP (64). Entre eles, conforme mostrou a Ponte ainda em agosto, está o de Alex dos Santos Silva, um mecânico negro de 29 anos perseguido pelas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) porque “trafegava em atitude suspeita” e depois baleado — a vítima esqueceu de acender os faróis do carro ao sair de um posto de combustíveis, quando ia encontrar os colegas de oficina para um churrasco após cumprir expediente em um domingo.

Também como no caso de Luis, os PMs envolvidos na morte de Alex — Fernando Felix, Ezequiel Scaffman Mota, Luis Fernando Santos Correia e Mario Di Cicco Filho — alegaram que ele teria apontado a eles um revólver, de dentro do carro em que estava, o que os fez “repelir a iminente agressão”. A esposa da vítima, Eliana Souza, afirma que essa versão é fantasiosa e que o marido nunca teve arma alguma.

Tanto no caso de Luis quanto no de Alex, as investigações conduzidas pela SSP-SP não deram retorno às famílias sobre o esclarecimento dos ocorridos e eventual responsabilização dos envolvidos.

Alex foi morto pela Rota quando ia para um churrasco após o trabalho (Foto: Arquivo pessoal)

Para Adilson, o poder público já deu diversas mostras de que não coíbe casos assim, como quando o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) ironizou denúncias de violações na Operação Verão do ano passado, dizendo que ativistas poderia ir “à ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta”.

“A opção da atuação da polícia continua sendo violência e confronto como medida de combate à criminalidade. Nós temos a continuidade de um padrão. O governo Tarcísio adota uma política de segurança que cada vez mais reforça esse discurso do combate ao inimigo. Ultimamente, ele não tem falado tanto, mas, no início do governo, vieram várias frases no sentido contrário ao da moderação da atuação policial. Então, existe a continuação de um modelo militarizado que aposta no confronto como se isso fosse eficiente”, diz o especialista.

Letalidade policial no estado de SP nos meses de janeiro a agosto

Comparação com homicídios indica uso abusivo da força

O número de mortes cometidas pelas polícias de São Paulo em agosto deste ano apresenta um recuo em relação ao mesmo mês do ano anterior — quando houve 78 casos. Se comparado aos anos anteriores ao da gestão Tarcísio, no entanto, o patamar atual é mais alto.

Entre 2013 e 2019, a média para o mês de agosto era de 67 ocorrências. Nos três anos de pandemia, o volume foi ainda menor, com 50 episódios em agosto de 2020, 38 naquele mês de 2021 e outros 27 no mesmo período de 2022.

Na soma de janeiro a agosto deste ano, as políciais mataram 492 pessoas no estado de São Paulo — no mesmo intervalo do ano anterior, foram 509. De 2013 a 2019, a média foi de 532 mortes para o período. Apesar do número menor agora, há indicação de uso abusivo da força policial no estado quando comparada a quantidade de mortes cometidas pelas polícias com o saldo geral de homicídios.

Vítimas de homicídios dolosos no estado de São Paulo

Essa comparação é uma das formas que a literatura especializada e pesquisadores da área da segurança pública utilizam para dimensionar a violência policial. Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção razoável é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.

De janeiro a agosto deste ano, houve 1.690 homicídios dolosos no estado. Se somadas essas mortes às cometidas pelas polícias, as forças de segurança paulistas foram responsáveis por 23% do total.

Proporção de mortos pelas polícias em relação aos homicídios dolosos no estado de SP de janeiro a agosto (2013-2025)

O que dizem as autoridades

Além da SSP-SP, cujos dados a Ponte toma como referência, o Ministério Público paulista (MP-SP), que tem entre suas atribuições constitucionais o dever de exercer o controle externo das polícias, também registra números de mortes decorrentes de intervenção policial. Eles são computados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp).

Em geral, os números do MP-SP são disponibilizados antes que os da SSP-SP — a pasta consolida os dados de letalidade policial apenas ao final do mês seguinte ao de divulgação. O Gaesp também apurou 69 mortes cometidas pelas polícias em São Paulo no mês de agosto — em julho, o órgão havia registrado 60, duas a mais do que o governo paulista.

A Ponte questionou o MP-SP se entende que o patamar atual de mortes indica uso abusivo da força policial e como tem atuado diante disso. Ainda não houve retorno.

A reportagem também fez contato com a SSP-SP, questionando sobre por qual razão o patamar de mortes de agosto ficou acima da média para o mesmo mês em anos anteriores à gestão Tarcísio. Em resposta, a pasta enviou uma nota idêntica à que havia encaminhado também no mês passado, quando a Ponte mostrou que 58 pessoas foram mortas pelas polícias em julho deste ano.

No comunicado, a secretaria chefiada por Guilherme Derrite (PP) diz que investe continuamente na capacitação do efetivo e em equipamentos de menor potencial ofensivo para reduzir a letalidade policial. “Todos os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) são apurados rigorosamente pelas respectivas Corregedorias das Polícias Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário”, diz ainda no texto.

Leia na íntegra a nota da SSP-SP

A Secretaria de Segurança Pública investe continuamente na recomposição e capacitação do efetivo, além da atualização de protocolos operacionais e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo visando à redução da letalidade. Além disso, há comissões direcionadas para análise das ocorrências, visando ajustar procedimentos, revisar treinamentos e aprimorar as estruturas investigativas. Todos os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) são apurados rigorosamente pelas respectivas Corregedorias das Polícias Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário. Comprovadas irregularidades, os envolvidos são responsabilizados nos termos da lei.

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