Por Chico Alves
Entre os muitos desafios dos tempos atuais, a questão da defesa dos direitos trabalhistas é um dos maiores. O avanço acelerado da tecnologia potencializou a tradicional exploração do capitalismo em cima do trabalhador, que, com a uberização, tem perdido benefícios básicos, há décadas garantidos pela Constituição. Além disso, uma noção distorcida de empreendedorismo ganhou espaço na sociedade, mascarando a precarização das condições de várias tarefas.
Diante desse cenário, como imaginar as perspectivas para o trabalhador nos próximos anos? Os jornalistas Carlos Juliano Barros e Leonardo Sakamoto se propuseram a responder a essa pergunta no livro “O que os Coaches Não te Contam Sobre o Futuro do Trabalho” (Editora Alameda), que será lançado em São Paulo nesta segunda-feira (17) e em Brasilia na terça-feira (18).
Produzido a partir de textos publicados pela dupla no UOL e na Repórter Brasil, a obra aborda desde velhas violações, como o trabalho infantil, o trabalho escravo e a discriminação de gênero, até novas expressões de precariedade, como o falso empreendedorismo e a submissão de milhões de pessoas a algoritmos e jornadas intermináveis.
Nesta entrevista ao ICL Notícias, Sakamoto trata de alguns dos temas do livro, e chama atenção para o risco do esvaziamento da Justiça do Trabalho, que poderá perder prerrogativas a depender de decisão de julgamento do Supremo Tribunal Federal que trata da pejotização.
“Considerando que muitos dos trabalhadores hoje em dia acabam na verdade abrindo empresas para tocar a sua vida, muitas vezes são só trabalhadores precarizados, então isso precisa ter uma solução”, diz Sakamoto. “É um debate que pode esvaziar previdência, pode esvaziar seguridade social…No final, a esmagadora maioria dos trabalhadores pode cair no BPC”.
ICL Notícias – O livro trata da precarização do trabalho, da uberização, do ataque aos direitos trabalhistas. Você vislumbrou algum caminho para que o arcabouço de proteção ao trabalhador seja minimamente preservado no futuro?
Leonardo Sakamoto – Uma das soluções é ao mesmo tempo um dos maiores problemas, que é efetividade da Justiça. A gente viu nos últimos anos reforma trabalhista, um monte de outras medidas e ações na tentativa de reduzir o arcabouço legal de proteção aos trabalhadores. E por mais que tenhamos tido várias mudanças, ainda está lá o artigo 7º da Constituição [que estabelece uma lista de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais], tem vários outros, como o pacote da CLT, que o governo Bolsonaro tentou detonar e não conseguiu. Agora um dos principais pontos para o futuro dos trabalhadores, para garantir que as instituições defendam a qualidade de vida dos trabalhadores, está em xeque.
O Supremo Tribunal Federal vai tomar em breve uma decisão que pode representar uma derrota aos direitos dos trabalhadores como nunca ou pode garantir a reafirmação dos direitos dos trabalhadores, que é o julgamento do tema 1389, que está sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Esse julgamento pode levar a uma reegenharia silenciosa da proteção social construída em décadas de lutas. A maioria das pessoas não faz ideia, até porque é um assunto complexo, mas que, em última instância, julga a competência da Justiça do Trabalho para analisar fraude contratual, ou seja, pejotização e terceirização irregulares. E a definição de quem deve provar que há fraude.
A lei permitiu a terceirização de todas as atividades de uma empresa, só que não permite fraude. A lei é muito clara ainda sobre o que deve ter uma relação empregatícia, que nesse caso tem que ser patrão-empregado. Tem muita empresa que contrata pessoas via nota fiscal, PJ, ou terceirizado, e fala: “a minha relação com ele é uma relação empresarial, eu estou contratando uma outra empresa”. Mesmo que seja uma empresa que foi constituída de uma forma super precária, numa relação precarizada, que na verdade é uma relação trabalhista. Então, existe na prática o vínculo empregatício naquilo, só que a empresa não quer e fala que a questão tem que ser resolvida na Justiça Civil, que vai tratar uma discussão entre duas empresas e não uma relação patrão-empregado. Isso pode ser aprovado.
Se o Supremo Tribunal Federal acaba afirmando que uma coisa é a terceirização, outra coisa é fraude, e que fraude existe, precisa ser reconhecida, e os direitos dos trabalhadores precisam ser garantidos, vai ser uma vitória que vai dar uma sinalização importante. Porque hoje um dos principais problemas dos trabalhadores está exatamente em que parte da Justiça não reconhece direito trabalhista, fala que ele não é cabível naquela relação. Considerando que muitos dos trabalhadores hoje em dia acabam na verdade abrindo empresas para tocar a sua vida, muitas vezes são só trabalhadores precarizados, então isso precisa ter uma solução. É um debate que pode esvaziar previdência, pode esvaziar seguridade social…No final, a esmagadora maioria dos trabalhadores pode cair no BPC.
Se o Brasil conseguir garantir que a sua Justiça especializada, que trata da questão de trabalhadores, continue sendo vista assim, como relação trabalhador-patrão, e não com uma relação empresário-empresário, eu acho que a gente pode ter uma esperança interessante aí para a frente. Caso contrário, vamos ter problema.
Você avalia que a exploração do trabalhador no Brasil é mais feroz que em outros países?
Depende, porque normalmente o capitalismo reinventa a forma de exploração nos locais onde ele vai se instalando, ele absorve e reinventa determinadas formas de exploração de acordo com a sua necessidade. Então, por exemplo, o trabalho escravo contemporâneo no Brasil tem características semelhantes aos de Angola, aos de Bangladesh, aos da China, aos dos Estados Unidos ou da França, e outros lugares, mas ao mesmo tempo tem características locais que dependem exatamente de processos sociais internos, de como funcionavam as formas históricas de exploração. Depende muito do lugar onde você está, inclusive, no Brasil.
Por exemplo, o trabalho escravo é trabalho escravo em qualquer lugar, cumpre os requisitos previstos na lei brasileira, na Convenção 29105 da Organização Internacional do Trabalho, na Convenção da Abolição da Escravatura, por exemplo. Porém, tem formas e formas. O trabalho escravo na fronteira agrícola amazônica absorve bastante da violência local, é extremamente violento. Temos ainda hoje trabalhadores que apanham, trabalhadores que são agredidos.
Não que não tenha em outros lugares. O trabalho escravo que foi encontrado nas vinícolas do Rio Grande do Sul uns anos atrás tinha taser, tinha cacetete, tinha gás de pimenta, que eram utilizados para “manter a ordem”. Só que você vê com mais frequência na fronteira agrícola amazônica, um local onde o Estado está presente simplesmente para ajudar no financiamento de produção, mas muitas vezes não está presente para garantir a efetividade dos direitos. Lá é extremamente violento. Fazendas de gado, desmatamento, mineração… É um nível de violência muito grande. Tem trabalhador que vira e mexe é espancado, morto, normalmente se leva dias para chegar a fazenda. Isso se reproduz em outras partes do mundo também, quando você tem expansão da fronteira agrícola ou do próprio capitalismo. Essas áreas são extremamente violentes no mundo inteiro. Em locais urbanos, a violência continua, mas de outras formas. Tem até violência física, mas mais disfarçadas.
Então, mais do que falar que o Brasil é mais ou menos violento, eu compararia regiões do Brasil
com regiões de outros lugares. As fronteiras agrícolas ao redor do mundo são extremamente violentes, principalmente no Brasil ou em outros lugares de floresta equatorial, por exemplo. E locais urbanos, tem violência também, mas ela não nesse nível de agressividade e não acontece com tanta frequência. É trabalho escravo, mas não é o local onde ficam assassinando pessoas assim com frequência.
Quando a gente fala de trabalho escravo, a gente está falando de um problema global, porque boa parte da produção do trabalho escravo tem elementos que acabam entrando em cadeias globais de produção. Então, o carvão com trabalho escravo na Amazônia ou em Minas Gerais entra na fabricação do ferro-gusa, que entra na fabricação do aço, que é exportado, que é usado na fabricação de peças na China, que depois vira peça para ser vendida como automóveis nos Estados Unidos. São cadeias globais. Então, o benefício de quem explora o trabalho escravo é global. A gente tem discutido bastante, inclusive na ONU, que o combate tem que ser global, não pode ser só local. Uma das soluções passa por isso. Você precisa de sistemas internacionais que imponham padrões mínimos, que os países imponham às suas empresas ações para que garantam que essas cadeias produtivas não tenham trabalho escravo, não tenham trabalho infantil, não tenham o trafico de seres humanos, não tenham a xenofobia, o racismo e tantas coisas.
Se muita gente não está atenta a essa perda de direitos dos trabalhadores e essa ideia do falso empreendedorismo está disseminada, de onde podemos esperar alguma reação ou mobilização contra isso, já que os sindicatos estão cada vez mais esvaziados?
Sabe aquela coisa de que a maior conquista do diabo é convencer que ele não existe? A maior conquista de quem é contra os direitos dos trabalhadores foi convencer que o próprio povo não quer direitos dos trabalhadores. Não é bem assim. Isso é muito louco, porque a questão é que se conseguiu ao longo do tempo fomentar, não através da porrada, mas através desses discursos nas redes sociais, usando internet e tudo isso, que o grande problema é a CLT. E o problema não é a CLT, o problema são patrões que pagam salários baixos.
O problema é que o próprio sistema foi contra alterar uma jornada 6×1, para 5×2, que nada mais é do que a atualização daquele antigo debate da redução de 44 para 40 horas semanais, que era tocado pelos sindicatos desde sempre. Se, por exemplo, os empregos oferecidos da CLT pagassem melhor e tivessem jornadas decentes de trabalho, as pessoas não iam estar criticando. Porque isso aí é proteção. Mas o que acontece? Ao invés disso, a grande sacanagem, o grande show de prestidigitação, foi bater na CLT e apontar que o empreendedorismo é a solução.
Eu acho o empreendedorismo muito legal. De verdade. Na PUC, eu sou professor de empreendedorismo e jornalismo. As pessoas ficam chocadas, mas a disciplina de empreendedorismo, de ensinar a criar um veículo de comunicação lucrativo ou sem fins lucrativos, com orçamento, com sistema de captação, missão, público-alvo, análise de mercado, sou eu que dou há muitos e muitos anos. E, modéstia à parte, eu sou bom nisso. E ajudei as pessoas a criarem uma série de veículos de comunicação.
Na Repórter Brasil [site de notícias criado por Sakamoto], que não tem fins lucrativos, a gente tem quase 40 pessoas CLT e está aí há 25 anos. Eu sei fazer o negócio funcionar. A questão é outra. A questão é que existe empreendedorismo de verdade e existe empreendedorismo de fachada, isso a gente trabalha várias vezes no livro. Que nada mais é do que o trabalhador precarizado convencido que é patrão. Exatamente porque ele não tem alguém dizendo: você vai entrar tal hora, você vai sair tal hora, você vai ganhar tal valor, você vai fazer isso. E ele acha que isso é liberdade. Mas, na verdade, essa liberdade dele impõe, no final das contas, uma jornada de trabalho muitas vezes maior do que a jornada que ele teria sob essa pretensa aura da liberdade.
Ou seja, para fugir de empregos sacanas, patrões escravagistas, eles acabam entrando no sistema em que eles acham que não tem patrão, mas tem, que é o aplicativo. Eles acham que não recebem ordens. Recebem, mas é do algoritmo. Esse é o ponto. Tem que garantir melhora do emprego, garantir melhores condições. A gente vê pesquisa atrás de pesquisa mostrando trabalhadores que estão nessa lida há muito tempo e uma grande parte deles gostaria de ter um emprego fixo, desde que pudesse trabalhar com uma quantidade de horas menor, desde que pudesse ganhar mais, e é possível.
Daí você me pergunta de onde vem a mobilização para conseguir isso? Bem, a quarta capa do nosso livro a gente não pediu para um especialista, para alguém famoso escrever. A gente pediu a quarta capa do livro para o Nícolas Santos, que é a liderança nacional do Breque dos Entregadores. Não estou falando que é por eles que vai ter a saída, mas é interessante o que eles vêm fazendo, né? Exatamente pela falta de sindicatos no setor. Não que não tenha que ter, mas houve todo esse esvaziamento e tudo isso, a criminalização dos sindicatos. E também por ser uma categoria que nasce de uma forma diferente. Não tem um chão de fábrica, o chão de fábrica são as ruas da cidade. Mas é interessante como eles percebem a exploração do preço mínimo, da falta de condições, de tudo isso mais, e eles se juntam, mesmo que a pauta ainda esteja sendo construída, eles sabem o que querem, se juntam exigindo melhores condições e exigindo das empresas de plataforma, falando “ó, ou você garante isso ou a gente cruza os braços, a gente vai fazer um breque”. E aí a empresa fala: “não, o Breque não faz diferença”, mas os últimos Breques em São Paulo fizeram uma puta diferença para as empresas, que foram obrigadas a negociar.
Eu diria que a solução vai se dar por organização. Mas precisa ter a certeza de que a Justiça vai continuar garantindo os direitos dos trabalhadores, a forma como vai regular esse emprego talvez seja uma forma nova, mas a força está nos próprios trabalhadores, como sempre esteve. A única diferença é que a forma de organização vai ser diferente. Então, da mesma forma que o ataque aos direitos dos trabalhadores é feito muitas vezes de forma digital, a organização digital também pode ser a saída.
Na sua opinião, como a imprensa tem tem se comportado diante dessa perda de direitos dos trabalhadores e dessa precarização?
Eu pego muito no pé da imprensa, tem até os colegas que sempre falam “pô, sacanagem, você pega muito no pé”. Pego e vou continuar pegando. É o seguinte, o jornalista precisa se lembrar que é trabalhador. A gente [jornalistas] não se reconhece como classe trabalhadora. Eu até falo no livro, devido às peculiaridades da profissão, a gente desenvolve laço com o poder e convive nesses espaços sociais e culturais do poder. Muitas vezes acaba seduzido por isso, acabamos enganados por nós mesmos e a gente só percebe que é trabalhador quando a gente é demitido. E acaba, muitas vezes, indo embora sem direito nenhum.
E aí o que acontece? Você vai ver, muitas vezes, gente falando que questão de negociação, de pressão, é coisa de caixa de banco, operário sujo de graxa, condutor de trem. Só que aí você vai ver que os bancários, os metroviários, os metalúrgicos têm mais chance de obter o que é justo do que a gente nas negociações com empresas. E aí você vai ver os próprios jornalistas quando cobrem e greve é uma tragédia, só fala de trânsito, trânsito, trânsito. Tá bom, [o protesto] trancou o trânsito, mas você foi lá ouvir o que a pessoa tá reivindicando? Ou você só ouviu falar do trânsito que trancou. Então o pessoal, o jornalista, ele não se vê como trabalhador de uma maneira geral. Não sabe de onde vem o reajuste, acha que vem do céu, que nem aquela pessoa que acha que o leite vem do mercado. A vida do jornalista é muito difícil, como a gente bem sabe. Sabemos que nem toda empresa é sacana, não é isso. Tem empresa que também tá na merda, vivendo crise do modelo de negócio, mas o jornalista precisa, sim, forçar para negociar, tentar entender como organizar.
E o que acontece é que é muito raro isso acontecer. A gente tem visto o pessoal se mobilizar nesse sentido de uma forma muito ruim. A gente vê o jornalista, muitas vezes, comprando um discurso que, na verdade, criminaliza greve, criminaliza sindicato. “Ai, todo sindicato é vagabundo”… Da onde, meu amigo? Tem muitos sindicatos safados, sim, da mesma forma que tem muitos patrões safados. Vai ter um sindicato honesto e um patrão honesto. Você precisa separar o joio do trigo. A gente vê isso quando tem investigação de sindicato, o pessoal tenta colocar tudo no mesmo balaio, tudo no mesmo lugar.
A imprensa, muitas vezes, louva as empresas, o aplicativo pelos ganhos, etc… Só que aí, quando tem a questão da reivindicação dos trabalhadores diz que aquele cara não é trabalhador, é um pequeno empresário, entregador. Você tá de brincadeira… Vai lá conversar com eles, vai lá entender as demandas, vai entender a natureza do trabalho. Muita gente legal, muito jornalista legal, acaba comprando o ponto de vista que é entregue porque ele próprio não se vê como trabalhador, então não consegue sentir empatia.
Eu acho que a questão é anterior. Eu acho que a gente precisa dar um passo atrás. Essa crença de uma mão invisível da justiça social que muitas vezes as pessoas têm ou crença na mão invisível da economia, de que as coisas vão ser ajustadas? Não vão! A outra questão está conectada com essa: a gente viu em São Paulo, durante a pandemia, jornalistas mais jovens se organizarem no sindicato para ajudar a pressionar os patrões que ganharam dinheiro naquele momento. Argumentaram que era justo fazer uma discussão de reajuste naquele momento. Então, eu também tenho esperança nos próprios trabalhadores de se conscientizarem para pressionar por mudanças nesse sistema. Ainda mais a gente que tem um papel fundamental de discutir a sociedade