Por Cleber Lourenço
O projeto de lei que eleva a faixa de isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas, uma das principais bandeiras do governo, transformou-se em um campo de batalha legislativo. A promessa de beneficiar diretamente milhões de contribuintes abriu espaço para uma avalanche de emendas parlamentares, muitas delas sem relação direta com a matéria. A leitura detalhada dos textos apresentados mostra a tentativa de parlamentares de emplacar agendas setoriais e corporativas sob a cobertura de uma pauta popular e de alto impacto político.
Na prática, o que deveria ser um debate sobre como financiar a isenção até R$ 5 mil mensais acabou incorporando propostas que criam novos benefícios, alteram regimes tributários complexos e até mesmo mexem em temas de pacto federativo. Ao lado de ajustes técnicos de mérito, surgem jabutis que distorcem o texto original e podem fragilizar o equilíbrio fiscal desenhado pelo governo.
Veja jabutis das emendas
Emenda nº 48 — Renata Abreu (Podemos-SP)
Propõe dedução de gastos veterinários no IRPF. Embora seja uma demanda com apelo social, trata-se de benefício setorial restrito e sem relação com a política de revisão da tabela e com a taxação de altas rendas.
Emenda nº 14 — Mendonça Filho (União-PE)
Retira incentivos regionais da Sudene e da Sudam do cálculo da alíquota efetiva sobre lucros de pessoas jurídicas. O texto abre espaço para reforçar subsídios regionais em um projeto pensado para pessoa física, desviando o debate para o campo dos incentivos empresariais.
Emenda nº 15 — Mendonça Filho (União-PE)
Afasta a aplicação da Lei 14.789/2023 e determina que incentivos de ICMS não integrem as bases de cálculo de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. O dispositivo ainda faz referência ao artigo 106 do CTN, criando margem para retroatividade. A medida reabre uma disputa jurídica de alto impacto fiscal, além de mudar completamente a lógica da compensação prevista no projeto.
Emenda nº 19 — Diego Garcia (Republicanos-PR)
Cria uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre apostas virtuais de quota fixa. A justificativa apresentada é a de compensar perdas com a isenção, mas a emenda inaugura um novo tributo fora do escopo do IR, trazendo para a mesa uma agenda tributária paralela.
Emenda nº 21 — Diego Garcia (Republicanos-PR)
Estabelece que lucros e dividendos apurados até 2025 fiquem livres de tributação no IRPF, mesmo quando distribuídos nos anos seguintes. A proposta abre uma janela de isenção para rendas do capital já acumuladas e compromete a principal fonte de compensação desenhada pelo governo.
Emendas nº 10 e nº 11 — Mendonça Filho (União-PE)
Determinam que a União compense estados e municípios de forma a manter, em termos reais, os repasses constitucionais previstos nos artigos 157 a 159 da Constituição, caso a atualização da tabela do IRPF reduza a arrecadação. Embora tenham relação indireta com o tema, deslocam a discussão para o pacto federativo e ampliam a complexidade da negociação.
Essas emendas evidenciam duas estratégias distintas: de um lado, a tentativa de setores específicos de aproveitar a tramitação de um projeto popular para inserir benefícios próprios; de outro, iniciativas que buscam desidratar o pilar de compensação, reduzindo a tributação sobre lucros e dividendos e transferindo a conta para a União ou para a sociedade de forma difusa.
O deputado Mendonça Filho apresentou diversas emendas ao projeto de isenção do IR (Foto: Câmara dos Deputados)
O deputado Mendonça Filho concentra parte expressiva das propostas classificadas como jabutis. Ao buscar inserir incentivos regionais e blindar subvenções de ICMS, sua atuação amplia a tensão entre a meta de simplificação tributária e o interesse em manter privilégios fiscais localizados. Já Diego Garcia apresenta emendas que criam alternativas de compensação via novos tributos e, ao mesmo tempo, tentam abrir brechas para preservar lucros e dividendos.
Do ponto de vista político, o movimento não é novo. O chamado “contrabando temático” é uma prática recorrente no Congresso: quando uma pauta de alta visibilidade e consenso social entra em discussão, bancadas setoriais enxergam a oportunidade de anexar suas reivindicações. Nesse caso, a isenção até R$ 5 mil serve como cavalo de Troia para agendas que dificilmente teriam espaço em projetos autônomos.
A consequência desse processo é dupla. Primeiro, aumenta-se o risco de judicialização, já que emendas sem pertinência temática podem ser questionadas no Supremo Tribunal Federal. Segundo, dificulta-se a construção de um arranjo fiscal sustentável, pois cada jabuti reduz a margem de arrecadação destinada a equilibrar a renúncia. A articulação política do Planalto terá de atuar para evitar que a pauta da isenção, considerada estratégica, se transforme em um passivo fiscal ou em uma colcha de retalhos de interesses corporativos.
O relator do projeto carrega, assim, uma responsabilidade decisiva: limpar o texto de emendas estranhas e preservar apenas aquelas que dialogam diretamente com o IRPF e a tributação de altas rendas. Ao mesmo tempo, precisará administrar a pressão das bancadas que tentam aproveitar a tramitação para emplacar suas próprias agendas. O resultado dessa disputa vai além do mérito tributário: será um teste sobre a capacidade do Congresso de separar uma política de interesse popular da prática tradicional de inserir jabutis em matérias de grande repercussão.
Se não houver filtro adequado, o projeto de isenção do IR, pensado para aliviar a carga da classe média e dos assalariados, pode se converter em uma vitrine de benesses setoriais, diluindo sua credibilidade e sua função redistributiva. A sociedade aguarda a promessa de justiça fiscal, mas o texto que sair do Congresso dirá se a prioridade será de fato o contribuinte ou a manutenção de privilégios escondidos entre as linhas de emendas parlamentares.