Casa EconomiaInfância e trabalho por um picolé

Infância e trabalho por um picolé

por Lindener Pareto
0 comentários
infancia-e-trabalho-por-um-picole

O sol de Pouso Alegre, no sul de Minas, tinha um jeito particular de anunciar o verão. Não era apenas o calor que se instalava sobre o bairro da Árvore Grande, mas uma espécie de chamado, um murmúrio que ecoava pelas ruas de terra e paralelepípedos. Para mim, um menino de oito, talvez dez anos, esse chamado se materializava na forma de um carrinho de picolé. Não me lembro da marca, mas a imagem do metal e do plástico branco e azul, suando sob o sol, é uma fotografia nítida na minha memória.

Alguém, talvez o próprio espírito da classe trabalhadora que me habitava desde o berço, me convenceu de que era meu dever, ou talvez meu destino, empurrar aquele carrinho pelas ruas. O ritual começava em um galpão, um lugar com cheiro de açúcar, gordura vegetal hidrogenada e frio, onde os carrinhos eram abastecidos. Era um misto de excitação, medo e expectativa. A cada picolé de fruta ou de leite que entrava no isopor, uma pequena moeda imaginária tilintava no meu bolso.

As primeiras paradas eram estratégicas: os vizinhos mais próximos, aqueles que me viam jogar bola na rua e que, por afeto ou pena, sempre compravam um ou dois picolés. “Ô, menino, vai um de uva hoje”, dizia o Biga, com seu sorriso gentil. Depois, vinha o desafio dos desconhecidos, as casas de portões mais altos e algum cachorro desconfiado, onde a coragem precisava ser maior que a vergonha.

Não era um negócio lucrativo. O sol, que era meu parceiro de vendas, era também meu inimigo. O calor que fazia as pessoas desejarem um picolé era o mesmo que me fazia devorar o lucro. Acontecia de eu tomar os sorvetes e ficar no prejuízo, ou, na melhor das hipóteses, ficar elas por elas. O dinheiro que entrava mal cobria o que eu consumia. Mas a contabilidade não era a lição mais importante daquela experiência.

Aquele carrinho de picolé era o carimbo na minha carteira de trabalho invisível. A sentença, sussurrada a cada esquina, de que “trabalharás desde muito novo”. Era a promessa, não dita, de que a vida seria uma sucessão de esforços, uma maratona sem linha de chegada definida. Aos 40 anos, a previdência social é uma miragem, e a paz, um artigo de luxo.

Hoje, passo por uma sorveteria e vejo picolés artesanais, gourmetizados, que custam no mínimo 30 reais. Mais do que o dobro do que eu costumava ganhar para vender um carrinho inteiro em 1994. O picolé mudou, o preço mudou, mas a classe social, essa, me acompanha como uma sombra, a única companhia inseparável de minha existência. Aquele menino do bairro da Árvore Grande ainda vive em mim, empurrando seu carrinho, não mais pelas ruas de paralelepípedo, mas pelas estradas sinuosas e tantas vezes dolorosas da vida adulta, onde o sol continua forte e o verão, parece, nunca acaba.

“Meninos Soltando Pipas”. Cândido Portinari, 1940. Óleo sbre tela. Fonte: “Projeto Portinari.”

você pode gostar