Por Flávio Serafini e Guilherme Pimentel*
A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou nesta terça-feira (23), em regime de urgência, a “Nova Gratificação Faroeste”. A medida prevê o pagamento de bônus de até 150% no salário de policiais civis em caso de “neutralização de criminosos”. A medida é nova, mas a política é velha: o Estado premiando a morte, e não a vida.
Nos anos 90, o Rio já sofreu com essa mesma gratificação. O resultado foi devastador: altíssima letalidade policial, banalização dos arquivamentos das investigações dessas mortes e fortalecimento das facções. Quem recebia esses prêmios? Muitos eram policiais ligados a esquemas criminosos, incluindo os que viriam a se tornar os assassinos da juíza Patrícia Acioli e da vereadora Marielle Franco. A história mostra que a “gratificação faroeste” legitima práticas perversas que corroem a própria democracia brasileira.
Desde 2021, a Polícia Civil do RJ tem passado por um redesenho institucional que intensificou o confronto e a militarização com a expansão de outro estímulo ao enfrentamento: as promoções por bravura. Em meio à pandemia, essas promoções deixaram de ser excepcionais e tornaram-se a principal via de progressão na carreira. Na polícia investigativa e judiciária do Rio de Janeiro, inteligência, eficiência, acuidade não importam, somente a bravura, que é concedida sem regulamentação e sem transparência de critérios, tornando-se instrumento do secretário de plantão de valorização da morte e também os amigos.
Segundo a Comissão de Servidores da ALERJ, o número de concessões de promoções por bravura cresceu 3.433% em 5 anos. Desvirtuando a própria Lei Orgânica da Polícia Civil que previa merecimento e antiguidade como principais critérios de promoção. No cargo desde julho de 2024, o secretário Felipe Curi já concedeu 563 promoções em pouco mais de um ano, média de 1,75 por dia – recorde histórico que reafirma a centralidade do confronto na lógica da corporação e a falta de critérios e transparência como prática institucional.
A emenda que busca reestabelecer a gratificação faroeste aprofunda essa tragédia e reflete a distopia da extrema direita de produzir um túnel direto à barbárie! Ao contrário dos discursos que defendem a medida, não se trata de proteger a sociedade, mas sim dar um salvo-conduto para execuções sumárias e para a “queima de arquivo”. Suspeitos que poderiam revelar redes criminosas ou relações espúrias com autoridades deixam de ser investigados por estarem mortos. Os agentes públicos que participam do crime organizado se fortalecem e ainda ganham status de heróis da sociedade. Pior impossível.
Além disso, quando o Estado premia a letalidade, acaba fomentando um temeroso e ilegal mercado da morte. Policiais corruptos aumentam os valores das extorsões e passam a ser pagos também pelo Estado por eliminar criminosos “inadimplentes”, ao mesmo tempo em que podem lucrar com homicídios a serviço de grupos criminosos que têm maior poder econômico. Mais do que nunca, a morte como fonte de lucro, e a vida leiloada impulsionando a milicialização do Rio de Janeiro.
Essa gratificação também é uma afronta ao orçamento público. Enquanto falta dinheiro para escolas, hospitais e políticas de prevenção, a extrema direita e seus aliados na Alerj querem gastar recursos premiando a matança. O recado é claro: jovens negros e pobres só recebem investimento como alvos a serem abatidos. Inaceitável continuidade histórica da escravidão colonial entre nós.
Para piorar, a medida ainda desvirtua a própria missão constitucional da Polícia Civil. Policiais deveriam ser avaliados pela capacidade de investigar, elucidar homicídios e desmantelar redes criminosas. Mas no Rio, invertem a lógica: o policial ganha mais não por reduzir homicídios, mas por produzi-los. O projeto de extermínio é gritante.
Especialistas são unânimes em condenar o retrocesso. Não há evidências de que esse tipo de bonificação reduza a criminalidade. Ao contrário, apenas corrói as bases já deterioradas do estado do Rio de Janeiro.
O governador Cláudio Castro tem agora a responsabilidade de vetar essa tragédia anunciada. Se sancionar, terá escolhido agravar a espiral de sangue que sufoca nosso estado há tantos anos.
O que precisamos não é de gratificação por morte, mas de uma polícia valorizada por sua inteligência investigativa, por sua capacidade de proteger a população e por sua coragem em enfrentar o crime sem se confundir com ele. A “Nova Gratificação Faroeste” é um atestado de covardia do poder político.
Assim como a bravura, se a “Nova Gratificação Faroeste” vingar, mais inocentes vão morrer, mais policiais honestos também, e o crime organizado sairá ainda mais fortalecido e violento. Não será por falta de aviso: já vimos esse filme nos anos 1990. O final trágico foi um dos componentes que nos trouxeram ao fundo do poço em que estamos. Não precisamos de mais retroescavadeiras neste momento.
*Flavio Serafini é deputado estadual e presidente estadual do PSOL; Guilherme Pimentel é ex-ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e atualmente um dos coordenadores técnicos da RAAVE (Rede de Atenção a pessoas Afetadas pela Violência de Estado)