Por Alice Maciel e Flávio VM Costa
Um dia antes de a Polícia Militar do Rio de Janeiro protagonizar a maior matança da história da capital, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ) determinou a liberação total das atividades da Refinaria de Manguinhos, a Refit, citada na Operação Carbono Oculto — que investiga um esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC).
A decisão atendeu a um pedido da refinaria de petróleo, que contou com apoio do governo de Cláudio Castro (PL). Porém, na noite desta quarta-feira (29), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) derrubou a decisão e manteve a interdição da Refit.
A Polícia Federal e o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) apuram se o combustível da Refit, comandada pelo advogado Ricardo Magro, abastece redes de postos de gasolina controlados pelo Primeiro Comando da Capital.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP), criticou nesta quarta-feira o governador do Rio ao afirmar que Castro é inoperante diante do contrabando de combustível.
“O governo do estado do Rio tem feito praticamente nada em relação ao contrabando de combustível, que é como se irriga o crime organizado”, disse.
Procurado pelo ICL Notícias, por meio de sua assessoria de imprensa, o governador não respondeu.
Em nota divulgada à imprensa no fim de agosto, quando a Carbono Oculto foi deflagrada, a Refit afirmou não ter sido alvo da operação e que não tem nenhuma relação com o crime organizado.
As instalações da refinaria foram interditadas no dia 26 de setembro pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e da Receita Federal, nos desdobramentos da operação.
Desembargador liberou a Refit
A medida publicada na segunda-feira pelo desembargador Guaraci de Campos Vianna, da 6ª Câmara de Direito Privado do TJRJ, havia permitido à Refit retomar integralmente suas operações. Foram liberadas a torre de destilação e o transbordo de mais de 52 milhões de litros de petróleo bruto e derivados que estavam retidos no âmbito das investigações.
“Ressalte-se que a presente decisão não está interferindo nas atividades administrativas ou fiscalizatórias de outras instituições ou entidades, mas sim preservando a competência do juízo universal nos aspectos patrimoniais da Empresa, priorizando a atividade econômica, a preservação da empresa e dos empregos e os interesses dos credores, como aliás já decidido inúmeras vezes, inclusive dentro do espectro deste próprio processo recuperacional em outras oportunidades”, ressaltou o magistrado em sua decisão.
Conhecido no meio jurídico por suas decisões polêmicas, Vianna chegou a ser afastado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em dezembro de 2019,suspeito de favorecer acusados durante plantões judiciais. Posteriormente, retornou à função de desembargador.
A decisão de Vianna a favor da Refit foi tomada na véspera da matança nos Complexos do Alemão e da Penha e contrariou o entendimento do juiz Arthur Eduardo Magalhães Ferreira, titular da 5ª Vara Empresarial. Ele havia declarado que a Justiça estadual era incompetente para interferir em ações de fiscalização da ANP e da Receita Federal.
O juiz de primeira instância havia determinado ainda que o caso fosse tratado na Justiça Federal, após manifestação da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro juntada aos autos em defesa do retorno das atividades da Refit, alegando risco de perda de arrecadação com a interdição.
No pedido de liberação, o governo fluminense argumentou que a paralisação das atividades da Refit impediria o pagamento de uma parcela de R$ 50 milhões mensais, referentes ao parcelamento de dívidas fiscais de cerca de R$ 1 bilhão da refinaria.
“Remarque-se, assim, que o Estado se encontra em regime de recuperação fiscal (RRF), sendo o incremento da arrecadação da dívida ativa essencial para que se possa ultrapassar essa pesada dificuldade, de tal sorte que a manutenção da ordem administrativa de interdição causará danos reflexos à arrecadação estadual”, destacou o procurador-geral Renan Miguel Saad, em petição protocolada em 10 de outubro.
Saad assumiu o cargo em novembro de 2023, em meio a acusações de que a Refit teria interferido em sua nomeação, o que a empresa negou à época.
ANP e Receita apontam fraudes
A decisão do desembargador Guaraci de Campos Vianna contrariou pareceres da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e da Receita Federal, que apontavam fortes indícios de que a Refit e suas parceiras comerciais — AXA Oil Petróleo S/A e Fair Energy Petróleo S/A — faziam parte de um “esquema de interposição fraudulenta de terceiros”, prática usada para ocultar os verdadeiros beneficiários de importações e gerar créditos tributários ilegítimos.
Segundo recurso apresentado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra a decisão favorável à Refit, as empresas AXA Oil e Fair Energy — fornecedoras exclusivas da refinaria — não possuem estrutura operacional real e contam apenas com oito funcionários. De acordo com a PGFN, elas eram usadas para simular importações de combustíveis e repassar benefícios fiscais fraudulentos à Refit.
“Empresas de fachada e/ou com capacidade operacional e financeira incompatíveis com as operações realizadas, são formalmente apresentadas como importadoras de cargas milionárias de combustíveis, em um esquema fraudulento que visa dissimular a origem dos recursos e ocultar os verdadeiros beneficiários das operações, para obtenção indevida de benefícios fiscais”, destaca a PGFN.
A Procuradoria enfatizou ainda que investigação descortinou “um esquema criminoso de escala e sofisticação sem precedentes, revelando como organizações criminosas se infiltraram em toda a cadeia de combustíveis para praticar sonegação fiscal bilionária, lavagem de dinheiro e concorrência desleal.”
Em nota técnica anexada ao processo, a Receita Federal alertou que a liberação das cargas apreendidas poderia esvaziar a autoridade do Estado e comprometer as investigações, já que as mercadorias constituem prova material dos crimes investigados. A ANP também havia interditado o parque industrial de Manguinhos por suspeitas de adulteração de combustíveis e irregularidades de segurança.
A União também argumentou, em liminar ao STJ, que a decisão de Vianna causa “grave lesão à ordem e à economia públicas” e beneficia uma empresa suspeita de operar dentro de um esquema de lavagem de dinheiro e fraude fiscal estimado em bilhões de reais.
Na noite desta quarta, o ministro da Corte, Herman Benjamin, atendeu ao pedido da Procuradoria e anulou a decisão do desembargador, mantendo a interdição da Refit.
Em coletiva à imprensa após a decisão do STJ, o ministro Fernando Haddad disse que pediria à Procuradora-Geral da Fazenda, Anelize Almeida, para entrar em contato com Cláudio Castro, com o objetivo de articular uma ação conjunta entre a Procuradoria-Geral do Estado e a Procuradoria-Geral da Fazenda.
“Vou pedir para a PGFN falar com o governador sobre o que acontece no Estado do Rio de Janeiro, que, aparentemente, não é do seu conhecimento, para que ele nos ajude a interromper esse ciclo, esse ciclo letal, mortal, que faz com que essa roda do crime organizado continue girando independentemente das tragédias que aconteçam nas comunidades”, afirmou Haddad.
“Nós temos que estancar isso, porque, senão, as pessoas que, eventualmente, são eliminadas, elas são repostas, são substituídas, e nós temos que operar para asfixiar o que irriga o crime organizado, o que abastece o crime organizado de recursos para a compra de armamentos, para aliciamento da juventude, para uma série de práticas conhecidas, que não serão interrompidas se não se fizer o trabalho no andar de cima”, acrescentou.
 
			        