Por Cleber Lourenço
O Rio amanheceu de luto, mas há quem transforme o luto em palanque. Nas vielas da Penha e do Alemão, o cheiro de pólvora ainda se mistura ao de sangue fresco, e a extrema-direita já posa para as câmeras. A megaoperação que deixou mais de cem mortos virou espetáculo político: cadáveres empilhados como degraus de um palanque macabro. O governador Cláudio Castro (PL), em vez de liderar um Estado, conduz um enredo mórbido onde a tragédia serve de vitrine. É o velho teatro do poder vestido de farda e moralismo, o mesmo que transforma sofrimento em marketing.
Felipe Curi, secretário da Polícia Civil, roubou a cena na coletiva. Em tom exasperado, bradou que “as únicas vítimas foram os quatro policiais” e chamou os mortos de “narcoterroristas”. Desferiu ataques a quem ousou criticar a operação — “engenheiros de obra pronta”, “narcoativistas”, “defensores de bandido”. Disse ainda que “nem o FBI faria igual”. E talvez tenha razão: nem o FBI ousaria celebrar uma chacina. Curi não discursou, desabafou. Falou com o fígado, num misto de raiva e soberba. A tragédia virou peça de exibição, e o secretário, seu mestre de cerimônias.
Mas o mais perverso é que nem os quatro policiais mortos escaparam da manipulação. São eles, afinal, os heróis que a retórica oficial diz defender, mas que foram usados como escudo moral de um governo que empilha corpos — inclusive os deles — para sustentar um discurso de força. É um desrespeito brutal, não só com as vítimas civis, mas com os próprios agentes do Estado, transformados em instrumento político de uma narrativa que trata a violência como virtude e o luto como detalhe.
A direita e a extrema-direita agora se preparam para desfilar até o Rio, em procissão eleitoral. Romeu Zema, Jorginho Mello, Ronaldo Caiado, Eduardo Leite e Mauro Mendes formam a comitiva que deve posar ao lado de Castro em nome da “lei e ordem”. Não é solidariedade — é marketing. Uma romaria de oportunistas que transforma sangue em bandeira e morte em discurso. Uma coreografia perfeita: fardas reluzentes, sorrisos ensaiados e nenhuma lágrima verdadeira. O espetáculo está pronto, e o Rio de Janeiro virou cenário.
A cena é de um Brasil que se acostumou a aplaudir o horror. Primeiro vem a operação “histórica”, vendida como triunfo. Depois, o discurso inflamado que legitima o abismo moral — há um inimigo a ser exterminado, e quem questiona é cúmplice. Por fim, o desfile dos governadores, a celebração pública da barbárie. Tudo embalado por notas oficiais, hashtags e falas ensaiadas. A morte é rebatizada de vitória; a dor, de conquista.
Felipe Curi fala como quem acredita que o Estado é mais legítimo quando atira. A retórica dele revela o coração da extrema-direita brasileira: uma elite que só se sente viva quando o país sangra. Se há corpos, há discurso; se há sangue, há palanque. É o populismo da bala, o messianismo da pólvora. E, no fim, o que resta é um país dividido entre quem chora e quem lucra com as lágrimas.
O Palácio Guanabara prepara-se para a foto oficial: Castro ao centro, Curi à direita, governadores sorrindo ao fundo. Nenhum olhar para o chão, onde jazem os mortos. É o retrato de um Brasil que perdeu o pudor, um país que transforma a tragédia em ativo político e o sofrimento em slogan. No fundo, é disso que se trata: um desrespeito profundo com a vida, com a cidade e com os próprios policiais que morreram. Morreram em serviço, mas ressuscitaram como peças de propaganda. Um palanque erguido sobre túmulos — e um país que, em silêncio, parece se acostumar a aplaudir.
 
			        