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Em artigo, Celso de Mello analisa as origens ideológicas da política anti-imigração de Trump

por Bia Abramo
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Em novo artigo para o ICL Notícias, o ministro Celso de Mello, que por 31 anos atuou no Supremo Tribunal Federal (STF), examina as origens ideológicas da política anti-imgração do presidente Donald Trump. Para o ministro, as medidas de Trump em relação aos imigrantes denotam “sua filiação a teses de ‘exclusão racial’,  tratando com brutalidade estrangeiros provenientes, notadamente, de nossa América Latina e da África, os ‘deserdados do vento e da vida’, despojados, até mesmo, do ‘direito a terem direitos’.

Para Celso de Mello, os “gravíssimos retrocessos em direitos de imigrantes, detenção prolongada sem audiência e remoções coercitivas em massa sem salvaguardas colocam os EUA  em tensão com o padrão de proteção internacional de direitos humanos.”

O ministro analisa as semelhanças do dicurso anti-imigração com outras ideologias totalitárias: “A vigilância moral da história, da República de Weimar ao campo de extermínio de Auschwitz, impõe que reconheçamos nos discursos atuais de ‘re-emigração’ uma sombra inquietante do passado, mesmo que sob roupagem contemporânea.” Também examina como, em outros momentos da história dos Estadops Unidos, as políticas de outros presidentes norte-americanos em relação à imigração desumanizaram aqueles imigrantes.

Leia, a seguir, a íntegra do artigo

O ex-ministro do STF, Celso de Mello

Da ‘América para os americanos’ (James Monroe, 1823)  à ‘América contra os latino-americanos’ (Trump, 2025)

Por Celso de Mello* 

Recentíssima matéria publicada pelo jornal “The New York Times” sobre mais uma denúncia de magistrados federais americanos contra abusos e práticas governamentais que subvertem o primado da lei e da Constituição (“rule of law”) expôs gravíssima anomalia da administração Trump, que vem pervertendo o exercício do poder e o respeito à ordem jurídica norte-americana!

Os atos e as declarações de Trump, um “bully” vulgar, revelam, antes de mais nada, a insensibilidade ética e a desmedida arrogância imperial desse governante americano, cujas ações são pautadas por um sentimento irracional de ódio, de xenofobia, de egocentrismo, de misoginia, de racismo, de preconceito e de ideias abomináveis típicas dos supremacistas brancos!

Isso se evidencia, entre outros fatores, pela análise de seu abusivo e inaceitável comportamento em relação a outros povos e nações, como se estes fossem “os novos bárbaros”, a serem repelidos, mesmo mediante violência institucional e manipulação dolosa da própria legislação americana, por se categorizarem — segundo sua distorcida, preconceituosa e seletiva visão de mundo — como seres desprovidos de qualquer direito e destituídos de dignidade!

As declarações e atos desse negacionista e supremacista branco, pretenso monarca presidencial e Senhor do Universo, expõem e revelam a face arbitrária, insensível e cruel de Trump, cuja política de imigração – por ele próprio denominada política de “re-emigração” (o outro nome da política de “intolerância”) — denota sua filiação a teses de “exclusão racial”,  tratando com brutalidade estrangeiros provenientes, notadamente, de nossa América Latina e da África, os “deserdados do vento e da vida”, despojados, até mesmo, do “direito a terem direitos”.

“Re-emigração”, uma designação do trumpismo que não ousa dizer o seu verdadeiro nome, porque nada mais é do que  um eufemismo sombrio para a recusa do “outro” (o imigrante); nada mais significa senão a nova denominação de “limpeza étnica” e social!!!

A política de “re-emigração” ou de remoção massiva promovida pelo governo Trump evidencia falhas em diversos níveis — processual (falta de garantias de justiça), ético (tratamento desumano de pessoas vulneráveis), econômico (desperdício de capital humano), social (estigmatização e tensão), e jurídico (desalinhamento com normas fundamentais de direitos humanos).

Ainda que cada Estado, apoiado em sua soberania, possa regular migração e o controle sobre fluxos de estrangeiros, a forma como está sendo levada adiante pela administração Trump suscita graves alertas e sérias preocupações.

Sob perspectiva eminentemente jurídica, esses gravíssimos retrocessos em direitos de imigrantes, detenção prolongada sem audiência e remoções coercitivas em massa sem salvaguardas colocam os EUA  em tensão com o padrão de proteção internacional de direitos humanos.

Ainda que não se possa equiparar Trump a Hitler, mostra-se intelectualmente legítimo e eticamente necessário denunciar os ecos de desumanização nas políticas de Trump que humilham pessoas, que as submetem a ameaças e a arbitrariedades ou que as degradam em sua própria condição de humanidade!!!

A história ensina que o genocídio começa com a linguagem na qual se fala de “infestação”, “invasão”, “limpeza”, “retomada”, “envenenamento do sangue”. Com essa perversa fraseologia, típica de métodos de “exclusão racial”,  cria-se terreno propício para o arbítrio, a crueldade e a desumanização do outro!

Como advertiu  Primo Levi: “Aquele que nega a humanidade de outro prepara o caminho para o seu próprio extermínio.” A ideia central de Primo Levi vem de sua última obra (“Os afogados e os sobreviventes”, 1986), escrita pouco antes de sua morte. Mas tem suas raízes literárias e morais em “É isto um homem?”.

Esse último livro  ( “É isto um homem?”) foi escrito por Primo Levi  que viveu o horror e a abominação de Auschwitz, na Polônia, o campo de extermínio onde se praticou o “mal absoluto” e no qual foram criminosamente sacrificadas milhares e milhares de pessoas  perseguidas pelo regime nacional-socialista!

Quem lê esse livro e o drama pungente sofrido por seu autor (Levi) e por seus irmãos de infortúnio , reunidos no inferno representado por Auschwitz, verá pessoas sem nome, sem esperança, destituídas de sua dignidade e humanidade, vivendo como sombras errantes que vagavam, perdidas, pelos caminhos sinistros, horrendos e obscuros do reino de Hades, ao lado do Estige, portando números de identificação gravados em seus braços e sofrendo humilhações e degradação inconcebíveis, vítimas da intolerância  de um regime totalitário, expostas à vilania e à torpeza sádica dos delinquentes nazistas que sufocaram a Alemanha e insultaram  toda a Humanidade em razão de seu ódio aos povos  por eles considerados “inferiores” (“Untermenschen”)!!!

É o que parecem sofrer os imigrantes latino-americanos, vítimas indefesas dessa cruel política de “re-emigração” de Trump.

É certo que não se pode confundir controle migratório legítimo com ideologia de exclusão racial. Quando um governo, no entanto, como o de Trump, transforma a diferença em perigo, e a presença do outro em crime, ele regride da razão política à lógica do bode expiatório.

A “lógica do bode expiatório”  (Levítico , capítulo 16, versículos 21–22)  e a noção conceitual  de “inimigo objetivo”, tal como formulada por Hannah Arendt em “Origens do Totalitarismo” pertencem ao mesmo campo de análise da desumanização e da manipulação política do ódio.

Torna-se relevante observar que o substrato ideológico que informa a política de “re-emigração” de Donald Trump parece refletir, com preocupante proximidade, a ideia central de Carl Schmitt, o principal  jurista do regime nacional-socialista, que define a política pela distinção amigo/inimigo, assinalando que todo agrupamento humano se organiza em torno dessa fronteira existencial (“O Conceito do Político”, Edições 70, 2015).

Para esse jurista alemão, o “inimigo” não é apenas o adversário, mas a negação ontológica do grupo, aquele grupo ao qual a comunidade se opõe e contra o qual se afirma!

Essa visão influenciou tanto as ideologias totalitárias (que absolutizam o inimigo) quanto seus críticos, como Hannah Arendt, que viu na formulação doutrinária de Carl Schmitt uma “secularização do estado de guerra permanente”.

Embora não sejam termos idênticos, há entre eles (“bode expiatório” e “inimigo objetivo”) uma correspondência estrutural profunda: ambos descrevem o mecanismo pelo qual um regime transfere suas contradições e frustrações a um grupo ou indivíduo que deve ser eliminado para que a sociedade “se purifique”.

A vigilância moral da história, da República de Weimar ao campo de extermínio de Auschwitz, impõe que reconheçamos nos discursos atuais de “re-emigração” uma sombra inquietante do passado, mesmo que sob roupagem contemporânea.

Como advertem Hannah Arendt” (“Origens do Totalitarismo, Companhia de Bolso (das Letras), 2013) , René Girard (“A Violência e o Sagrado”, Paz e Terra, 2008), Claude Lefort  (“A invenção democrática – Os limites da dominação totalitária”, Editora Autêntica, 2011)  e Umberto Eco  (“O fascismo eterno”, Record, 2018), toda sociedade que precisa de um inimigo permanente (o inimigo externo ou objetivo) para existir já começou a dissolver sua própria humanidade…

Quando a política oficial de “re-emigração” sob Donald Trump se articula como um mecanismo de expulsão ou devolução, o imigrante transforma-se de sujeito em “problema”, de indivíduo com história em outro ser que “invade”, “rouba”, “ameaça”.

A retórica que fala de “invasão”, “ilegalidade”, “peso sobre o sistema” converte o estrangeiro numa categoria impessoal: não mais um rosto, mas um “outsider”, um forasteiro. Essa desumanização legitima a detenção, a expulsão, a vigilância, a injusta estigmatização do imigrante latino-americano,  reduzindo-o a mero objeto de gestão estatal.

Ao quebrar a ponte da alteridade — o reconhecimento de que o imigrante é um ser humano, com medos, aspirações, vínculos e afetos –, a política de Trump reforça uma lógica de exclusão: quem não “é daqui” deixa de merecer dignidade e respeito. E nesse gesto, a própria comunidade nacional se empobrece: ao negar o outro, nega-se uma parte essencial da dignidade  humana, o que significa “ouvir-se o silêncio” de quem foi obrigado a partir, e ver-se o espaço público ocupado por mecanismos de medo e de repressão.

Tratar o imigrante como “outro descartável” não é apenas erro humano. É grave  sintoma de uma narrativa política que define cidadania como privilégio e presença como ameaça.

É importante relembrar que, na história dos EUA, houve presidentes  americanos, como Herbert Hoover,  que se mostraram  hostis  aos estrangeiros, especialmente aos provenientes da América Latina.

Durante a Grande Depressão (1929-década de 1930) , o governo Hoover (1929-1933), do Partido Republicano, implementou e apoiou campanhas locais de “repatriação voluntária” que, na prática, foram deportações coercitivas em massa. Estima-se que entre 300 mil e 2 milhões de pessoas foram enviadas ao México: cerca de 60% delas cidadãos americanos de origem mexicana.

Essas ações, conduzidas sob o lema “American jobs for Americans”, marcaram o início de uma ideologia nacionalista que equiparava estrangeiro a ameaça econômica, num contexto de desemprego e crise social. Foi uma limpeza social e econômica, mascarada sob o discurso da “repatriação humanitária”. Esse foi o chamado programa de  “Repatriação Mexicana” (“Mexican Repatriation”).

Assim, a prática do governo Hoover constitui  claro antecedente histórico desse tipo de hostilidade institucionalizada.

Também em 1954, o governo de Dwight Eisenhower (1953-1961),  do Partido Republicano,  lançou a Operation Wetback, uma operação militar e policial massiva para deportar trabalhadores mexicanos. Entre 1 e 1,3 milhão de pessoas foram removidas dos EUA — muitas sem qualquer processo legal (“due process”), frequentemente com violência e violações de direitos humanos.

A operação refletia um modelo de militarização da fronteira EUA-México e estabelecia um paradigma de segurança nacional aplicado a migrantes latino-americanos, vistos como massa excedente e desordeira. Lamentavelmente,  a linguagem oficial evocava limpeza e “ordem pública”, ecoando precedentes autoritários de “higienização social”.

Essa política não apenas buscou o controle físico das fronteiras, mas instaurou uma fronteira moral, uma divisão simbólica entre “nós” (os legítimos, vale dizer, os americanos do Norte) e “eles” (os indesejáveis).

Cabe ainda rememorar, neste ponto, que outros presidentes americanos também implementaram medidas de restrição e de deportação em massa,  geralmente sumária , de latino-americanos (aí incluídos os brasileiros).

William McKinley, do Partido Republicano, durante sua presidência (1897-1901), embora não houvesse adotado medidas de deportação sumária em massa,  foi um precursor simbólico da doutrina da “América para os americanos” , interpretada em chave etno-nacionalista : um verdadeiro prolongamento da Doutrina Monroe, de 1823,  em versão imperial.

Durante o mandato do presidente Woodrow Wilson (1913-1921), do Partido  Democrata, por sua vez, um clima de hostilidade interna instaurou-se durante a Primeira Guerra, com perseguições políticas e raciais, que atingiram também mexicanos e porto-riquenhos.

Woodrow Wilson, embora idealista em sua retórica internacional, legitimou práticas de segregação racial e de xenofobia “científica”. Muitos programas de seu governo, de “retorno voluntário” de mexicanos,  datam justamente de sua época , ainda que em escala menor do que sob Herbert Hoover.

Sob a presidência de Ronald Reagan (1981-1989), mais um do Partido Republicano, a retórica de seu governo  associou latino-americanos a “drogas”, “gangues” e “subversão comunista”, reforçando a “criminalização étnica”.

O muro simbólico, no governo Reagan, começou a se consolidar, com reforço de patrulhas de fronteira e centros de detenção. Milhares de centro-americanos fugindo de guerras civis (El Salvador, Guatemala, Nicarágua) foram rejeitados como refugiados e deportados sem análise sequer dos respectivos pedidos de asilo territorial.

Vê-se, portanto, que, antes ou mesmo depois de Hoover, Eisenhower e Trump, a que acima aludi, houve outros presidentes dos EUA que autorizaram ou toleraram deportações em massa, discriminação sistemática ou exclusão forçada de imigrantes latino-americanos.

Da era de McKinley à de Trump, a política migratória dos Estados Unidos, pelo menos sob cinco presidentes republicanos e um democrata, oscilou entre império e medo.

Quando a economia vacila, ou quando o “perigo estrangeiro” é invocado, o latino-americano volta a ser “o outro” , a ser contido, removido ou silenciado. O que muda é o discurso governamental justificador de tais medidas. Ora é a segurança dos EUA, ora o emprego dos americanos, ora a identidade nacional,  ora a origem étnica.

O núcleo moral , no entanto, permanece o mesmo: a negação da humanidade, a desumanização do migrante latino-americano como meio de reafirmar a pureza “imaginária” da nação norte-americana!

Em síntese: a desumanização tornou-se elemento central da linguagem política, onde o outro é reduzido a “ilegal”, e o “ilegal” é reduzido a não humano, a despeito do que solenemente proclama o Artigo 1º  da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela 3ª Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Esquece-se , no entanto, o governo Trump  de que , ao negar abrigo aos que buscam apenas viver com dignidade nos EUA , a América trai não apenas os estrangeiros, mas a si mesma. Como escreveu Octavio Paz, “a pior solidão é a de quem perdeu sua própria alma”.

A América, ao erguer muros contra os que a procuram, arrisca-se a perder a alma que a fez grande — aquela fundada na crença de que todos os homens são criados iguais.

Todas essas reflexões em torno do drama que tão profundamente atinge o imigrante latino-americano permitem-nos constatar quão vil é a utilização, pela política de “re-emigração”  de Donald Trump, da desumanização do “outro” (o imigrante) como instrumento operacional de degradação ética do estrangeiro.

Sabemos todos que, desde o século 20, milhões de latino-americanos têm olhado para o norte como quem contempla um horizonte de redenção. Os Estados Unidos — essa América idealizada em filmes, discursos e promessas — tornaram-se o símbolo do mérito recompensado, da justiça possível, da liberdade ao alcance do esforço humano.

O trabalhador mexicano, o exilado chileno, o refugiado cubano, o estudante colombiano, o imigrante brasileiro: todos levam na bagagem a esperança de José Martí, “la patria del porvenir”. Partem movidos pela fé de que o trabalho e a honestidade bastarão para abrir as portas de um futuro mais justo.

Mas o sonho que os atrai é também o espelho das fraturas de seu próprio continente. Fogem da desigualdade, da violência, da corrupção e da instabilidade que corroem suas nações; buscam, na América do Norte, a chance de viver sob a promessa de que “aqui, tudo é possível”.

Contudo, ao atravessar as fronteiras, descobrem que o mapa da esperança não coincide com o da realidade, pois acabam se defrontando com uma América que os rejeita.

A América que os recebe é, muitas vezes, uma América hostil que os teme, que os humilha  e que os despreza. A mesma sociedade que precisa de suas mãos para colher, construir e servir, recusa seus rostos, seus sotaques e seus sonhos.

No canteiro de obras, no restaurante, no campo de colheita, o imigrante latino é presença indispensável e, ao mesmo tempo, invisível. Seu trabalho sustenta a prosperidade de outros, mas sua existência é mantida à margem. Ele é o trabalhador sem nome, o estrangeiro tolerado — aceito enquanto útil, negado enquanto igual.

O sonho americano, nessa perspectiva, torna-se o espelho invertido da exclusão: a liberdade prometida convive com o medo da deportação; a igualdade proclamada se dissolve no preconceito; a dignidade buscada se depara com o estigma.

Como observou Eduardo Galeano, “as veias abertas da América Latina continuam a sangrar”:  agora não pela extração de suas riquezas, mas pela migração forçada de seus filhos em busca de uma sobrevivência negada em sua terra natal.

Esse drama não é apenas econômico — é espiritual. O imigrante latino-americano experimenta um duplo exílio: o desterro da terra e o desterro da alma.

Perde, aos poucos, o idioma da infância, os cheiros e sons que lhe davam sentido ao mundo. Vive dividido entre duas pátrias que o rejeitam: a que o expulsou pela miséria e a que o repele pela soberba. Já não é plenamente latino, porque o tempo e o idioma o afastam da origem; nem plenamente americano, porque o sistema o mantém como estrangeiro permanente.

Octavio Paz descreveu essa condição como o “entre-lugar”, o “in-between” , “o intervalo identitário” da nostalgia e do ressentimento” — o espaço vazio onde se habita sem pertencer. É o silêncio de quem trabalha em meio a uma língua que o não nomeia e a uma sociedade que o não escuta e que, até mesmo, o despreza…

Mas há também grandeza nesse silêncio. Ao erguer casas que jamais habitará e plantar frutos que não comerá, o imigrante realiza, sem saber, um ato de fé. Sua dignidade invisível é a semente moral de uma América diferente — aquela que ainda não nasceu, mas que sobrevive nos gestos de solidariedade e resistência entre os que vieram do Sul.

Essa é a “América Subterrânea”!

Com efeito, nas comunidades latinas — em bairros de Nova York, Los Angeles, Miami ou Chicago — recria-se uma outra América, invisível e mestiça. Nela, o espanhol, o português, o quéchua e o guarani se misturam aos sons do inglês; as padarias e as igrejas se tornam abrigos da memória; e o trabalho coletivo reconfigura o sentido de pertencimento.

José Carlos Mariátegui via, na dor social dos povos latino-americanos, não apenas um sintoma, mas uma força criadora: a capacidade de transformar sofrimento em cultura e exclusão em consciência. Essa América subterrânea é herdeira dessa força. Ela não reivindica o sonho americano dos outros, mas cria o seu próprio — um sonho de comunidade, de solidariedade , de respeito recíproco e de justiça silenciosa.

O drama do latino-americano que vai à América em busca da felicidade e encontra o desprezo não é apenas uma tragédia individual — é o espelho de uma contradição civilizacional. Ele revela a distância entre a retórica universal e abstrata dos direitos humanos e a realidade cotidiana e concreta da desigualdade global.

E, no entanto, é esse homem — o rejeitado, o marginal, o invisível, o desprezado, o sem documento — quem preserva, paradoxalmente, o verdadeiro ideal americano: a crença de que a liberdade, a dignidade e a esperança pertencem a todos os seres humanos.

Essa é a lição moral do exílio latino-americano: a América dos muros, da humilhação e da indiferença pode rejeitá-lo, mas a América dos homens — aquela que nasce da coragem de resistir, de amar e de trabalhar — continua viva em seu coração.

A resiliência do imigrante latino-americano revela, paradoxalmente, a despeito da indiferença da sociedade americana que o ignora , da exclusão que sofre  e do tratamento humilhante e preconceituoso que se lhe dispensa , o poder de quem, como ele,  não desiste! Não desiste jamais!

É que  cada imigrante que resiste reafirma, com sua vida, o que Walt Whitman sonhou em verso e José Martí traduziu em verdade (“Nossa América”, Editora UnB, 2011) :

“A América será una, quando for justa para todos os seus filhos.”

*Ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999)

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