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Por Beatriz Drague Ramos – Brasil de Fato
O Rio de Janeiro (RJ) contabilizou 3.729 tiroteios entre os anos de 2022 e o início de novembro de 2025 em áreas próximas a escolas. Segundo os dados, foram, portanto, 18 episódios por semana. Desses, 1.644 ocorreram durante operações policiais afetando o cotidiano escolar de milhares de crianças e adolescentes. Os dados são do Instituto Fogo Cruzado e foram obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato.
O levantamento mostra que 5.180 escolas foram impactadas por tiroteios na região metropolitana do Rio nos últimos quatro anos (2022-2025), quase metade dessas escolas foram afetadas por tiroteios no seu entorno durante incursões policiais.
“O impacto real na vida desses estudantes é incalculável”, afirma Carlos Nhanga, coordenador regional do Instituto Fogo Cruzado no Rio de Janeiro. Segundo ele, na rotina escolar as ações policiais representam aproximadamente metade dos tiroteios que afetam o cotidiano das escolas e dos estudantes no Rio de Janeiro. “Até essa terça-feira (4), registramos 327 tiroteios no entorno escolar decorrentes de ações policiais, só em 2025, o que representa mais de 50% do total de tiroteios registrados próximos a unidades de ensino.”
Quando as operações policiais acontecem sem planejamento adequado, as consequências para os estudantes são imediatas e graves: escolas fecham, aulas são suspensas, crianças e adolescentes ficam na linha de tiro, explica ele.
“O medo e o trauma se tornam parte do cotidiano. E esse ciclo de violência gera uma série de impactos que ainda não conseguimos dimensionar. Estamos a poucos dias do Exame Nacional do Ensino Médio. Em quais condições os alunos dessas escolas, que quase diariamente são impactadas por tiroteios, chegarão para as provas?”, questiona.
Ele destaca que nos últimos nove anos, 45% das crianças e adolescentes baleados no Rio foram atingidos durante ações policiais. “Esses números evidenciam que as operações mal planejadas não apenas interrompem o direito à educação, mas colocam em risco direto a vida dos estudantes.”
As informações do Instituto Fogo Cruzado mostram que 2022 foi o ano com mais tiroteios no entorno escolar: ocorreram 1.248 tiroteios perto de escolas. Quatro em cada dez foram em contextos de operação policial, que impactaram o funcionamento de 760 unidades educacionais.
O levantamento aponta que praticamente metade dos tiroteios aos arredores de escolas são desencadeados por operações policiais. O mesmo aconteceu nos anos seguintes, quando aproximadamente 42,93% dos tiroteios vieram de ações policiais no entorno de escolas, em 2023. Mais de 540 escolas sofreram com a violência em ações policiais.
Em 2024, 46,25% dos tiroteios próximos às escolas que ocorreram durante as operações atingiram 413 escolas. Até o momento, neste ano, trocas de tiros decorrentes de ações policiais afetaram 511 escolas, em 327 tiroteios de um total de 647.
O representante do Instituto Fogo Cruzado destaca ainda que faltam protocolos rígidos e o cumprimento do que já existe. A ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, estabeleceu diretrizes que deveriam proteger as escolas: operações policiais precisam ser justificadas, planejadas e acompanhadas pelo Ministério Público. Além disso, há determinação de que ações perto de escolas e hospitais respeitem o funcionamento dos locais, principalmente em horário de entrada e saída escolar.
“Faltam protocolos rígidos que atendam a necessidade e a realidade dos alunos e dos profissionais da educação. Mas falta, sobretudo, uma política de segurança que não provoque de forma demasiada essa quantidade absurda de tiroteios no entorno de escolas”, critica Nhanga. “De nada adianta a existência de protocolos enquanto nossas crianças continuarem expostas aos tiroteios, principalmente em operações mal planejadas.”
Três quarteirões da linha de tiro
Os números do Instituto Fogo Cruzado vão ao encontro dos dados de um levantamento do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) que destaca que 45% dos tiroteios registrados na região metropolitana do Rio de Janeiro ocorreram a menos de 300 metros de alguma escola. Em mais de um terço desses casos, houve envolvimento de agentes da polícia.
Segundo o órgão, está em curso a expansão de um sistema automatizado de comunicação aos gestores da educação, para, quando houver operação, agilizar as medidas necessárias para proteger alunos e servidores.
No parecer, o MP se posiciona contra um pedido feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro para impedir operações policiais em um raio de 500 metros das escolas, argumentando que a proposta é impraticável.
Segundo o órgão, a adoção dessa medida transformaria “bairros e comunidades inteiros em áreas proibidas para a atuação das forças de segurança”. Por isso, o órgão defende que seja mantida a decisão original do Supremo Tribunal Federal (STF) na chamada “ADPF das Favelas”.
O STF, nesse julgamento, não impôs uma proibição de operações nas proximidades das escolas, mas determinou que seja observado um rigoroso respeito ao princípio da proporcionalidade no uso da força, especialmente nos horários de entrada e saída de alunos e funcionários.
Bairros mais afetados
A grande maioria dessas escolas está localizada em favelas e comunidades periféricas do Rio de Janeiro. Os bairros mais afetados são Maré, com 74 tiroteios, que afetaram o funcionamento de 45 escolas; Cidade de Deus, com 49 tiroteios e 18 escolas impactadas; e Madureira, com 47 tiroteios e 26 escolas com funcionamento prejudicado, aponta o levantamento do Instituto Fogo Cruzado.
Nhanga chama a atenção para o fato de que não há nenhuma escola impactada pelos tiroteios da zona sul da cidade. “Isso evidencia que não estamos falando de um problema distribuído uniformemente pela cidade. Estamos falando de crianças e adolescentes que vivem em territórios historicamente marcados pela ausência de políticas públicas e que também têm seu direito à educação sistematicamente violado pela violência armada”, aponta.
As áreas de conflitos deflagrados são as mesmas onde os grupos armados expandiram seu domínio nas últimas décadas e onde as operações policiais acontecem com maior frequência, explica o pesquisador. “É inaceitável que o local de moradia determine se uma criança terá ou não o direito de estudar com segurança.”
Planejamento obrigatório
A implementação de um planejamento obrigatório, com a justificativa de todas as operações com base em investigações prévias, com objetivos claros e acompanhamento do Ministério Público, deveria ser um protocolo a ser seguido pelas forças policiais, destaca Nhanga. “As operações sem planejamento colocam crianças na linha de tiro. Depois, essas ações deveriam respeitar os horários escolares. Outro passo seria garantir transparência e prestação de contas para a população.”
Outro ponto analisado por ele como fundamental é a produção e divulgação de dados públicos sobre operações no entorno escolar, incluindo quantas escolas foram afetadas, quantas crianças ficaram sem aula e quais foram os resultados concretos dessas ações. Ele afirma também a necessidade de fiscalização do Ministério Público de forma mais efetiva, a fim de checar se as operações estão sendo realizadas conforme os protocolos estabelecidos.
“O Brasil é signatário de convenções internacionais que protegem crianças em contextos de conflito armado. Não é aceitável que crianças brasileiras convivam diariamente com tiroteios no caminho para a escola”, conclui Nhanga.
Procurado pelo Brasil de Fato, o governo do Rio de Janeiro não respondeu qual é o protocolo seguido pelo governo e forças policiais para que a educação e a segurança de crianças e adolescentes não sejam impactadas pelos tiroteios até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto.