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Documento da Abin expõe fragilidades que alimentam o crime organizado no Brasil

por Schirlei Alves
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Um documento classificado da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), datado de janeiro de 2018 e ao qual o ICL Notícias teve acesso, revela em detalhes como o Estado brasileiro enxerga as falhas que permitem o avanço do crime organizado nas fronteiras — problemas que se refletem hoje em operações como a megaoperação contra o Comando Vermelho no Rio.

“A vulnerabilidade do Estado é tão grave quanto a fragilidade do território”, registra o documento, que cita a porosidade física, a corrupção endêmica e a cooptação de agentes públicos e privados como fatores que ampliam o poder de facções e organizações criminosas em regiões de fronteira.

O relatório traça uma leitura inédita das dinâmicas criminais, descrevendo o país como comprimido por dois grandes eixos de pressão, batizados de Arco Norte e Arco Centro-Sul. O primeiro é alimentado por fluxos que partem da Colômbia e da Venezuela, atravessando o Amazonas e o Acre.

O segundo concentra a expansão das facções brasileiras, em especial o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que impulsionam a difusão do crime a partir do interior rumo ao litoral e aos centros urbanos.

“O Acre constitui a dobradiça entre forças centrífugas, que empurram o crime para dentro, e forças centrípetas, que o irradiam para fora”, descreve o texto.

Essa metáfora, usada pela Abin, transforma o estado amazônico em ponto de encontro do crime importado e do exportado, entre o que entra pela floresta e o que se difunde pelas rodovias nacionais.

Rio de Janeiro (RJ), 28/10/2025 – Durante operação policia contra o Comando Vermelho, integrantes da facção fecham comércio e usam lixeiras incendiadas para bloquear vias. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Tipos de fronteira e riscos

A Abin classifica as áreas de fronteira em tipos de interação — “capilar”, “sináptica” e “zona-tampão” — e explica que cada uma exige uma estratégia de segurança distinta. As zonas capilares seriam as de fluxo constante de pessoas e mercadorias; as sinápticas, onde as cidades-gêmeas se fundem em uma só dinâmica econômica e social; e as zonas-tampão, de baixa densidade populacional, usadas para transporte e estocagem de ilícitos.

“O caráter sináptico das cidades-gêmeas cria uma continuidade funcional do território”, afirma o documento. “A fronteira, nesses casos, é simbólica, e não física.”

Entre os exemplos, o relatório cita Assis Brasil (AC) e Iñapari (Peru), e Brasiléia (AC) e Cobija (Bolívia) como espaços críticos, onde a integração urbana e comercial “torna impraticável a separação entre o legal e o ilegal”.

A Abin alerta que, nesses locais, o fluxo diário de caminhões, motocicletas e balsas permite que contrabandistas e traficantes atuem “misturados ao comércio regular e ao turismo de fronteira”, reduzindo a eficácia de operações policiais tradicionais.

A análise rompe a ideia de que a Amazônia concentra toda a pressão criminosa. O relatório identifica o trecho Bolívia–Paraguai como o maior polo difusor de criminalidade para o Brasil, apontando que a combinação de fronteiras secas, infraestrutura rodoviária, depósitos logísticos e redes financeiras sustenta uma “economia paralela” que abastece os grandes centros do país.

“A difusão de ilícitos da fronteira Centro-Sul é mais intensa e capilar que no Arco Norte, por associar criminalidade transnacional à economia formal”, diz o texto.

A Abin observa que empresas locais de transporte e agronegócio são usadas por organizações criminosas para encobrir o tráfico de drogas e armas, além de movimentações financeiras suspeitas.

Fronteira amazônica

O documento também detalha o contexto internacional, conectando o Brasil à reconfiguração da criminalidade na Colômbia após o acordo de paz com as Farc. A dispersão de ex-guerrilheiros e a ascensão de grupos dissidentes, como o Exército de Libertação Nacional (ELN) e o Clan del Golfo, ampliaram a presença do narcotráfico nas fronteiras amazônicas. Segundo a Abin, a rota que antes levava a cocaína para o Caribe passou a buscar o Atlântico Sul como caminho alternativo.

“Em 2016, mais de 50% das apreensões recordes de cocaína na Colômbia foram realizadas pela Marinha, e em 2017, 12 toneladas foram confiscadas em Urabá, epicentro das ações do Clan del Golfo”, registra o relatório.

O estudo dedica parte significativa ao chamado “fator humano”, considerado pela agência como o elemento mais crítico da crise fronteiriça. O texto afirma haver “casos recorrentes de cooptação de servidores, militares e empresários locais” que atuam de forma deliberada ou negligente para facilitar o transporte de cargas ilegais, a evasão de divisas e o funcionamento de redes de lavagem.

“Sem a correção dos fatores institucionais, a simples ocupação física da fronteira é insuficiente para conter o avanço do crime”, conclui a Abin. A agência recomenda “integração de bancos de dados, fortalecimento das corregedorias e ação conjunta entre agências de segurança, inteligência e fiscalização”.

O documento também discute a ausência de uma política de longo prazo para as fronteiras brasileiras. Segundo a análise, operações isoladas “produzem impacto pontual, mas não consolidam presença de Estado”, permitindo que facções substituam o poder público em regiões de baixa presença institucional.

Sete anos depois, muitos dos alertas permanecem atuais. A interiorização do PCC e do CV, o aumento do tráfico fluvial e a escalada de violência no Norte confirmam as tendências antecipadas pela Abin. O relatório também identificou a falta de coordenação entre os órgãos que receberam o material — um vácuo que, segundo especialistas, ainda persiste.

O material encerra com uma observação que soa premonitória:

“O problema das fronteiras brasileiras é estrutural. Ele se move por dentro do sistema.”

O diagnóstico reservado da Abin, redigido há mais de meia década, serve hoje como radiografia de um Estado que reconheceu suas fragilidades, mas não as resolveu. Ele mostra que a fronteira falha não apenas onde o mapa termina, mas onde as instituições se omitem.

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