Índice
As passeatas de 21 de setembro alteraram o comportamento do Congresso Nacional. Até então, a preocupação dominante entre os parlamentares era agradar aliados partidários e cumprir acordos de bastidor, por vezes pouco transparentes. Na última semana, porém, deputados e senadores adotaram outra postura e voltaram-se a temas de impacto real sobre a vida das pessoas.
A mudança foi perceptível. A Câmara aprovou a isenção efetiva do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais, enquanto o Senado entregou a espinha dorsal da reforma tributária sobre o consumo — a que cria o IBS e a CBS, pilares do novo IVA nacional. Ao mesmo tempo, propostas como a “PEC da Blindagem”, a anistia aos envolvidos no 8 de janeiro e o aumento do número de deputados perderam fôlego, sufocadas por um ambiente político mais atento às demandas sociais. Pela primeira vez em muito tempo, o Congresso discutiu o país real — e não o próprio reflexo corporativista.
O que foi aprovado e por que isso importa
A virada não foi retórica. Na Câmara, o Projeto de Lei 1087/25, de autoria do Executivo, ampliou a faixa de isenção do IRPF até R$ 5 mil mensais e criou uma estrutura compensatória inédita: um adicional mínimo de 10% para rendas tributáveis acima de R$ 600 mil por ano. Na prática, a proposta corrige uma distorção antiga. Enquanto trabalhadores assalariados pagam entre 9% e 11% de alíquota, a elite de rendimentos altos — especialmente quem recebe via lucros e dividendos — recolhe cerca de 2,5%. O relatório do ex-presidente Arthur Lira, aprovado por 493 votos favoráveis em Plenário (votação histórica), estabelece neutralidade fiscal, ou seja, sem renúncia de arrecadação.
O alcance é expressivo: cerca de 15,5 milhões de pessoas terão aumento direto na renda líquida, enquanto 141 mil contribuintes de alta renda passam a pagar mais. O impacto estimado de renúncia é de R$ 25,4 bilhões, compensado pela tributação adicional. A proposta ainda corrige a tabela, inclui o 13º salário na isenção e amplia o rol de rendas dedutíveis — desde ganhos do agronegócio até dividendos aprovados até dezembro de 2025. Lira prometeu, ainda, uma política nacional de atualização da tabela a ser enviada em um ano, respondendo a um pleito histórico da classe média.
No Senado, a aprovação do PLP 108/2024 completou o outro lado da equação: a regulamentação da segunda parte da reforma tributária sobre consumo, prevista na Emenda Constitucional 132. O texto, do relator Eduardo Braga (MDB/AM), cria dois tributos — o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — que substituirão ICMS e ISS, formando um IVA dual. O novo sistema muda a lógica da tributação: de origem para destino, simplificando o recolhimento e a fiscalização.
Para garantir eficiência e transparência, foi instituído o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), uma entidade pública especial com 54 membros — 27 representando estados e Distrito Federal, 27 representando municípios. Esse órgão coordenará a arrecadação, a cobrança e a distribuição do imposto, com alternância de presidência entre estados e municípios. O projeto também inclui o split payment, mecanismo pelo qual o imposto é automaticamente separado no momento da compra, reduzindo o risco de sonegação.
Outros dispositivos complementam a estrutura: criação de cashback para baixa renda, uniformização do ITCMD (heranças e doações) e do ITBI (transmissão de imóveis), e instituição do Imposto Seletivo, que incidirá sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. O Senado, entretanto, limitou a alíquota máxima desse imposto a 2% — decisão que ainda será revista pela Câmara.
O Congresso atacou dois nós históricos: a regressividade da tributação da renda e a irracionalidade do consumo.
Da letra da lei à política: quem ganha, quem teme
A aprovação de duas pautas realmente estruturais na semana seguinte às mobilizações revela algo maior que consenso técnico: uma inflexão política induzida pela pressão social. O Congresso, acostumado a reagir por inércia ou conveniência, foi compelido a agir por relevância. As manifestações recentes não pediam cargos, mas coerência. E, quando o custo de ignorar a pauta popular supera o de enfrentá-la, abre-se a “janela de políticas” descrita por John Kingdon: o momento raro em que problemas, soluções e vontade política se alinham.
Na prática, a isenção até R$ 5 mil reposiciona o eixo da justiça tributária. Em vez de distribuir incentivos via exceções e deduções, o modelo cria progressividade por estrutura — e não por favor. O adicional mínimo de 10% sobre rendas altíssimas é simbólico, mas rompe com o tabu da “intocabilidade” dos dividendos. Ainda assim, há brechas. O próprio texto permite distribuição de lucros referentes ao exercício de 2025 até 2028, abrindo uma janela de elisão para quem planejar bem. A desigualdade tributária começa a ceder, mas a elite fiscal ainda tem espaço para contornar o espírito da lei.
No campo da eficiência, o novo IBS/CBS pode reduzir o custo de conformidade e a litigiosidade — estimadas em bilhões anuais. O split payment é uma inovação relevante: transfere o recolhimento diretamente ao Estado, diminuindo atrasos e fraudes. No entanto, o risco é outro: centralização. O Comitê Gestor do IBS, embora paritário, concentra poder técnico e decisório em uma estrutura nacional, potencialmente afastada das realidades locais. A promessa de “cooperação federativa” pode virar “concentração burocrática” se as regras de alternância e auditoria não forem rigorosas.
Há também o embate simbólico do Imposto Seletivo. Limitar a alíquota sobre bebidas açucaradas a 2% foi realizado por meio do acatamento da emenda do senador Izalci Lucas (PL-DF). Países que adotaram “sin taxes” mais altas — México, Reino Unido, Chile — reduziram consumo e ampliaram receitas de saúde pública. O Senado optou pela moderação, talvez para garantir maioria, talvez por medo de reação empresarial. O resultado é ambíguo: o princípio de tributação saudável entrou na lei, mas esvaziado de potência fiscal.
Por trás de tudo, está a mudança de atitude política. O Congresso que há poucos meses discutia a “PEC da Blindagem” agora aprova projetos com impacto estrutural. O que mudou foi o cálculo de sobrevivência: neste ciclo, quem vota contra a pauta-país perde capital social e possivelmente a eleição no próximo ano.
O teste começa agora
A transição do ruído para o desenho institucional é a primeira etapa. A partir daqui, três métricas se tornam essenciais para distinguir manchete de política pública. Primeiro, a alíquota efetiva média por decis superior de renda, que mostrará se a progressividade prometida no IR realmente se materializa sem perda de arrecadação. Segundo, o tempo médio de restituição e uso de créditos tributários — sobretudo na migração de ICMS para IBS —, indicador-chave de eficiência e confiança federativa. Terceiro, o índice de conformidade fiscal, que medirá o sucesso do split payment e da responsabilização das plataformas digitais.
Do lado institucional, a governança do CG-IBS será um laboratório inédito de cooperação federativa. O modelo prevê relatórios públicos, auditoria interna e paridade de gênero mínima de 30% em posições de liderança. São mecanismos promissores, mas frágeis sem pressão da sociedade civil. A transparência, que no papel é mandatório, precisa ser traduzida em dados abertos, metas de desempenho e controle orçamentário independente.
O cenário otimista projeta destravamento de investimentos, simplificação tributária e aumento de emprego. O intermediário sugere ganhos parciais — crescimento tímido e ruído político entre União e entes federados. No cenário pessimista, prevalecem judicialização, captura regulatória e fuga de base tributária.
Esses três futuros dependem menos da lei e mais da execução. O Congresso cumpriu seu papel ao legislar; agora, o Executivo e o Fisco precisam traduzir a norma em prática. A sociedade, por sua vez, terá de vigiar os indicadores para que a janela aberta pela pressão popular não se feche no silêncio burocrático.
Notas conclusivas
A semana em que o Congresso voltou a legislar sobre o país, e não sobre si mesmo, pode marcar um ponto de inflexão. A isenção do IR até R$ 5 mil e o novo sistema IBS/CBS atacam, simultaneamente, a regressividade da renda e a irracionalidade do consumo. É uma guinada dupla: distributiva e institucional. Mas o resultado dependerá de algo mais prosaico — execução, governança e controle público. O CG-IBS precisa operar com transparência; as alíquotas, ser calibradas com prudência; os créditos e devoluções, processados sem criar gargalos.
Sem métricas claras e acompanhamento social, o risco é transformar uma conquista estrutural em mais um caso de “reforma sem resultado”. A pressão popular abriu a janela; cabe à cidadania mantê-la escorada contra o vento dos velhos interesses.