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Por Manuela Borges
Durante sua gestão como Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro (2019–2022), a ex-ministra Damares Alves lançou uma cartilha intitulada “Os riscos do uso da maconha na família, na infância e na juventude”, que criticava o uso medicinal da Cannabis e afirmava que não existir evidências científicas sobre tratamentos com os canabinoides (moléculas medicinais encontradas na planta). Para completar, a cartilha classificou o vegetal como a “droga da morte”.
Esse posicionamento foi amplamente criticado por especialistas e associações de pacientes, que consideraram a cartilha um material de desinformação e fake news ignorando mais de 25.600 estudos científicos disponíveis na plataforma de estudos científicos PubMed, além de histórias reais de inúmeros pacientes que se beneficiam da planta atualmente no Brasil.
Experiências reais derrubam negacionismo
Na ocasião, o neurocientista, Sidarta Ribeiro, referência na área disse: “No caso da maconha medicinal – mesmo no caso das pessoas mais conservadoras – elas se rendem às evidências quando ficam doentes ou algum de seus familiares precisam desse medicamento. A maconha medicinal é um remédio muito importante e quanto antes entramos no século 21 melhor”, defendeu o vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em 2022.
Agora, Damares Alves (Republicanos), na qualidade de senadora pelo Distrito Federal, alerta sobre o risco de desabastecimento de Canabidiol no país devido às investigações para apurar fraudes no INSS, mencionando o envolvimento da empresa World Cannabis.
A empresa pertence a Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como “Careca do INSS”. Preso pela Polícia Federal na última sexta-feira (12/09), Antunes é apontado como líder de um esquema de fraudes envolvendo descontos indevidos em aposentadorias e pensões do INSS, movimentando mais de R$ 53 milhões por meio de 22 empresas, incluindo a World Cannabis.
Corrupção e lavagem de dinheiro
Recentemente, a empresa tem sido alvo de investigações devido ao envolvimento de Antunes em esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro. Em maio de 2025, operação da Polícia Federal apreendeu carros e motos de luxo na casa do empresário.
No Instagram, a senadora Damares publicou: “O ‘Careca do INSS’ tem uma empresa que importa derivado da maconha? Aparentemente sim, um dos veículos apreendidos, segundo a PF, pertence a essa empresa World Cannabis, que trabalharia na importação de Canabidiol. Há pacientes que dependem desse medicamento”, alertou a parlamentar.
Mais de 400 empresas operam no setor da Cannabis
Em outras falas púbicas, a senadora Damares disse que os pacientes não poderiam ser prejudicados por causa da investigação da PF e que o fornecimento de Canabidiol não poderia ser interrompido.
Entretanto, a parlamentar esqueceu de mencionar que pelo menos outras 400 empresas também atuam no ramo de remédios à base de Cannabis no Brasil. O dado consta no Anuário da Cannabis, um estudo feito pela Kaya Mind.
Em outras palavras, não há risco de desabastecimento por causa da investigação envolvendo fraudes no INSS, já que a World Cannabis é apenas uma entre tantas outras empresas que podem fornecer o medicamento, inclusive por meio do Sistema Único de Saúde.
Para o presidente da Associação de Pacientes Santa Cannabis, Pedro Sabaciauskis, essa postura da senadora entra em contradição com a política adotada no governo Bolsonaro, que, por meio da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), financiou a divulgação de desinformações negando – com veemência – o uso medicinal da planta.
Causa estranheza
“O que me surpreende nesse posicionamento da senadora Damares não é o reconhecimento dos benefícios da Cannabis — isso já é algo evidente. O que causa estranheza é ela justificar a importância da planta para defender o “Careca” do INSS, revelando uma clara incoerência e expondo seus interesses pessoais quando se trata de um amigo”, afirma Pedro.
Na visão do ativista, mais preocupante ainda é o fato de esse amigo estar sob investigação. “Afinal, quais são os critérios que a senadora Damares utiliza para decidir quando defender ou não determinada pauta”, questiona o presidente da associação de pacientes da Cannabis medicinal.
Essa falta de coerência entre alertar para o desabastecimento de Canabidiol e financiar materiais que negam o uso medicinal da erva levanta questionamentos sobre a transparência das políticas públicas relacionadas ao tema.
Especialistas questionam mudança de posição
Para o psiquiatra Wilson Lessa, vice-presidente da AMBCANN (Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia) o apoio da senadora Damares à empresa World Cannabis é no mínimo estranho e questionável.
“De lançar uma cartilha que nega o uso medicinal da maconha no final de 2020, a defender uma empresa que importa extratos de Cannabis existe um hiato que não foi preenchido com uma retratação de que existe sim o uso medicinal compassivo para diversas doenças”, afirmou o médico.
O mercado de Cannabis medicinal no Brasil tem mostrado crescimento significativo. Em 2024, o número de pacientes que utilizava medicamentos à base de Cannabis cresceu 56%, atingindo 672 mil pessoas quando o mercado movimentou cerca de R$ 852 milhões. Esses dados indicam que o setor está se consolidando, apesar de o insumo ainda precisar ser importado por falta de regulamentação da produção nacional.