No calendário das festas brasileiras, setembro é o mês de Cosme e Damião. Os médicos gêmeos teriam sido martirizados a mando de Diocleciano, imperador romano, nos cafundós do século IV.
Entre nós, a celebração é marcada por cruzamentos entre as crendices do cristianismo popular e as múltiplas áfricas que se encontram na diáspora. A festa dos gêmeos é cerzida pelos sabores e saberes de certo Brasil generoso; aquele que desafia o Brasil tacanho, intransigente, fundamentalista e boçal que cotidianamente mostra as garras e os dentes.
O Cosme e Damião da minha meninice era o da oferenda de saquinhos cheios de doces que minha avó distribuia em seu terreiro de macumba: cocô de rato, suspiro, maria-mole, cocada, doce de abóbora, pirulito, pé de moleque, paçoca, mariola, balas. Para ensacar tudo, fazíamos linha de montagem, com os doces organizados em esteiras e os saquinhos passando de mão em mão.
A tradição, todavia, está em risco. Tem sido cada vez mais comum que crianças evitem os doces porque, segundo os pais, a festa de Cosme e Damião é “coisa do demônio”. A intolerância alimentada pelo racismo religioso ultrapassa o mundo dos adultos, campeia cada vez mais nas cidades desencantadas e impede que a garotada se esbalde e se lambuze.
A coisa me entristece ainda mais porque sou um devoto amoroso dos encantamentos do Brasil. Arrebatado pelos tambores e pelas procissões, me emociono com o santo no andor, o caboclo na macaia e o preto velho no gongá. Os calos das mãos brasileiras que seguram a corda santa do Círio de Nazaré e os calos maturados no couro do atabaque que evoca os orixás são as mãos do Brasil e do seu povo.
Cosme e Damião é festa com gosto de rua e gente miúda. Tem alegria de moleque chutando bola, de dendê no caruru de sete meninos, de flozô e de viração do mundo. Para quem souber observar, é dia de reverenciar o sentido da vida onde aparentemente ele não está.
O problema é que somos acossados pelo medo da alteridade, o horror da diferença, a falta de curiosidade, o pacto com a intransigência, o pânico de perceber no diverso a possibilidade de beleza que aconchegue a vida.
Como escrevi certa feita, diversão é caminho de alargamento do mundo. Divertido vem de divertere, virar em diferentes direções (de dis-, “para o lado”, mais vertere, “virar”). Diversidade tem a mesma origem. Divertido, diverso, diversão, diversidade: a alegria de perceber as coisas de outras formas e jeitos; como as artimanhas da meninada brasileira que pega doce na rua.