Especialistas ouvidos por reportagem da BBC News Brasil apontam que a aprovação da proposta que propõem enquadrar facções criminosas como organizações terroristas podem trazer efeitos colaterais para a economia. A iniciativa, liderada por parlamentares de oposição após a megaoperação do governo do Rio de Janeiro que deixou 121 mortos, prevê mudanças na Lei Antiterrorismo para enquadrar grupos como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho), e permitir bloqueio de bens, investigação pela Polícia Federal e cooperação internacional.
O ex-policial e pesquisador Roberto Uchôa, da Universidade de Coimbra, que também é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ONG apartidária que reúne especialistas na área), afirmou à reportagem da BBC que, se o Brasil passar a classificar as facções como terroristas, países como os Estados Unidos podem adotar a mesma designação, abrindo espaço para sanções automáticas a empresas e fundos de investimento suspeitos de ligação com o crime organizado.
Segundo ele, como o crime organizado está profundamente inserido na economia formal, as restrições poderiam atingir bancos, fintechs e companhias de diversos setores, gerando insegurança jurídica e aumento dos custos de compliance. “O país não está preparado para o nível de controle financeiro que isso exigiria”, disse Uchôa.
Sobre o projeto, ele disse: “Eu acho que nem os deputados têm noção do que eles estão fazendo. Eu acho que, para variar, é mais uma uma discussão legislativa com base no fígado”.
Investigações recentes da Polícia Federal já apontaram movimentações bilionárias de organizações criminosas entre 2020 e 2024, por meio de empresas de fachada e fundos de investimento.
Para analistas, uma eventual designação das facções como terroristas poderia levar à revisão de operações internacionais, afetando crédito, investimentos estrangeiros e exportações brasileiras.
Uso de legislações contra facções pode abrir caminhos para abusos
Em maio, o governo dos Estados Unidos chegou a solicitar formalmente que o Brasil classificasse o PCC e o CV como grupos terroristas, alegando ameaças à segurança norte-americana — pedido negado pelo governo federal.
Mesmo assim, países vizinhos como Argentina e Paraguai já adotaram a medida, o que acende um alerta sobre os impactos econômicos e diplomáticos de um eventual alinhamento do Brasil a essa política.
Também ouvido pela reportagem, Ben Saul, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidos) sobre Direitos Humanos e Contraterrorismo, alertou para o risco de abusos e de ampliação indevida do conceito de terrorismo, caso o projeto seja aprovado.
“O uso de legislações antiterrorismo contra grupos criminosos pode abrir caminho para outros tipos de abusos. (…) Antes de os EUA invocarem a Lei de Estrangeiros Inimigos para deportar centenas de venezuelanos sob a alegação de suspeita de terrorismo, a primeira coisa que eles fizeram foi declarar o Tren de Aragua como uma organização terrorista. E depois disso é que vieram as deportações sumárias”, lembrou.
Ele complementa que, após essa designação, os EUA passaram a atacar barcos no Caribe e no Pacífico, classificando seus ocupantes como “narcoterroristas”, e concluiu: “Muitas vezes é um caminho para uma série de abusos ainda maiores”.
Justificativa do projeto
Em sua justificativa para o projeto, o deputado Danilo Forte (União-CE) afirma que a classificação de grupos criminosos como terroristas daria mais ferramentas ao poder público para lidar com as facções: “Neste sentido, este Projeto de Lei, ao tipificar atos de terror praticados por grupos criminosos organizados na Lei Antiterrorismo brasileira, possibilita a responsabilização dos integrantes e líderes dessas organizações por atos preparatórios, antecipando a tutela penal para reforçar a capacidade de prevenção e resposta a essas ameaças antes que se concretizem”, diz trecho do texto. “Além disso, a competência investigativa passa a ser atribuída à Polícia Federal, garantindo uma investigação mais especializada e abrangente”, completa.
Ele argumenta também que haveria maior facilidade para apreensão de bens de criminosos classificados como terroristas.
Em agosto, a Polícia Federal deflagrou três operações (Carbono Oculto, Quasar e Tank) que demonstraram a profundidade das conexões entre o crime organizado e a economia nacional.
A estimativa da PF é de que um esquema operado pelo PCC tenha movimentado pelo menos R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024.