A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (5) o projeto de decreto legislativo que suspende a resolução nº 258 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que estabelecia diretrizes para o acesso ao aborto legal por crianças e adolescentes. O texto foi aprovado por 317 votos a favor e 111 contra, e seguirá agora para análise do Senado Federal.
A resolução, publicada em dezembro de 2024, orientava serviços de saúde, assistência social e proteção sobre os procedimentos necessários para garantir, de forma articulada, o direito ao aborto legal para menores de idade. Entre as determinações, o Conanda previa que a criança ou adolescente deveria ser acompanhada durante todo o processo por profissionais do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e passar por um processo de escuta especializada.
O documento também estabelecia que o procedimento fosse realizado, preferencialmente, no município de residência da paciente. Caso o serviço local não estivesse disponível, a orientação era encaminhar a criança ou adolescente ao centro de saúde mais próximo com capacidade para realizar o aborto.
No Brasil, o aborto é permitido em três situações: quando a gravidez resulta de estupro, quando há risco de morte para a gestante ou em casos de anencefalia fetal.
Mais cedo, os deputados haviam aprovado o regime de urgência para a proposta — por 313 votos a 119 —, o que permitiu que o texto fosse levado diretamente ao plenário, sem necessidade de análise prévia pelas comissões temáticas.
Ameaça ao aborto legal
O PDL foi apresentado pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ), com o apoio de outros 45 parlamentares de partidos conservadores e do centrão, como PL, União Brasil, Republicanos e PSD.
Tonietto argumenta que a resolução do Conanda extrapola suas funções e alega que a norma dá autonomia a menores de 14 anos para realizar o aborto independentemente da autorização dos pais.
“Sendo assim, prevê, na prática, uma submissão quase compulsória ao procedimento de aborto”, disse a deputada.
O relator do projeto, deputado Luiz Gastão (PSD-CE), defendeu a suspensão da norma, argumentando que a resolução do Conanda “viola o direito à vida” e concede “autonomia indevida” a menores de idade, que são considerados incapazes pela legislação civil.
Deputadas da oposição criticaram a proposta apresentada por Tonietto. Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirmou que, em muitos casos, o estuprador é um familiar da criança.
A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) também criticou o PDL 3/2025: “O que vocês querem aqui é introduzir no Código Penal algo que não existe, para criminalizar essas meninas. Isso é inconstitucional, isso é uma vergonha. […] Menina não é mãe e estuprador não é pai. Respeitem a lei brasileira”.
Diretrizes e evidências internacionais
Uma das principais disputas sobre a resolução envolve o tempo gestacional. O PDL questiona que o Conanda não estabelece limite de idade gestacional para a realização do aborto. No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não define um limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nem recomenda proibições baseadas nesse critério.
Pelo contrário, suas diretrizes desaconselham regulamentações que restrinjam o aborto por semanas de gestação, enfatizando que tais limites podem prejudicar o acesso seguro ao procedimento e a saúde das vítimas.
A Resolução do Conanda não cria uma nova legislação, mas organiza o fluxo de atendimento a crianças e adolescentes, assegurando que tenham prioridade nos serviços de aborto já previstos em lei, acompanhamento contínuo de defensor público e atendimento humanizado.
No Brasil, o aborto é legalizado em três situações: quando a gravidez resulta de estupro, quando há risco de morte para a gestante e em casos de anencefalia do feto. Além disso, a Lei de Estupro de Vulnerável (artigo 217-A do Código Penal) considera todas as meninas menores de 14 anos como vítimas de estupro, independentemente do consentimento, garantindo assim o direito ao aborto legal.
Laura Molinari, coordenadora da campanha “Nem Presa Nem Morta”, lembra que o Brasil registra milhares de crianças e adolescentes grávidas em decorrência de violência sexual, mas que apenas uma pequena fração realiza o aborto legal. “A resolução só organiza legislações já existentes para garantir que essas meninas tenham acesso ao serviço de aborto legal”, afirma.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado neste ano, o Brasil registrou, em 2024, 87.545 vítimas de estupro — o maior número da história desde que os dados começaram a ser compilados. Ao menos 79,8% das vítimas eram vulneráveis, 55,6% eram negras e 65,7% dos casos ocorreram dentro de casa.
Os Ministérios da Mulher e dos Direitos Humanos emitiram normas técnicas reforçando que o PDL 3/2025 é inconstitucional e prejudica a proteção de meninas vítimas de violência sexual. Esses documentos destacam que a Resolução nº 258/2024 apenas organiza procedimentos já previstos no Código Penal, garantindo atendimento humanizado, digno e intersetorial, e que a revogação da norma poderia comprometer o acesso seguro ao aborto legal e outros direitos essenciais à saúde, integridade física e psicológica das vítimas.
O PDL 3/2025 é criticado por especialistas e órgãos de direitos humanos por apresentar vícios constitucionais e impactar negativamente a proteção das vítimas de violência sexual, caso seja aprovado.
*Com informações da Folhapress