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Por Cleber Lourenço
O voto do ministro Luiz Fux no julgamento do núcleo 1 da tentativa de golpe de 8 de janeiro foi celebrado com entusiasmo pela base bolsonarista. Ao sustentar que o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem competência para julgar acusados que não detêm mandato e defender a anulação das ações, Fux forneceu argumento de peso para o discurso da direita radical, que insiste em deslegitimar a atuação da Corte nos processos do 8 de janeiro.
Essa reação, porém, contrasta de forma direta com a postura do mesmo campo político em episódios recentes, quando a manutenção do foro privilegiado foi considerada fundamental para proteger o senador Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas. Em 2020, a defesa de Flávio lançou mão da tese do chamado “foro por mandatos cruzados”, sustentando que a passagem do então deputado estadual para o Senado garantiria a continuidade da prerrogativa de foro, ainda que em instância diversa.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acolheu esse raciocínio e enviou o processo para o Órgão Especial, retirando-o das mãos do juiz de primeira instância Flávio Itabaiana, responsável pelas principais decisões da investigação. O Ministério Público recorreu, mas em novembro de 2021 a 2ª Turma do STF confirmou a decisão, mantendo o caso em segunda instância. Na mesma sessão, os ministros anularam quatro dos cinco Relatórios de Inteligência Financeira do Coaf, documentos que sustentavam as suspeitas de desvio de salários de assessores no antigo gabinete do parlamentar.
O senador Flávio Bolsonaro (Foto: Saulo Cruz/Agência Senado)
Fux adotou caminho inverso na votação de ontem
Naquele julgamento, a maioria da Turma considerou que não houve afronta direta à decisão da Ação Penal 937, que restringiu o foro a crimes cometidos durante e em função do cargo. Pesou também o argumento de que a Procuradoria do Rio havia perdido o prazo para contestar a decisão do tribunal fluminense, o que acabou contribuindo para consolidar a blindagem judicial em torno do filho do então presidente. Na prática, a interpretação garantiu que Flávio não fosse julgado por um juiz de primeira instância e reduziu de forma drástica o arsenal probatório da acusação.
No julgamento dos primeiros réus do 8 de janeiro, Fux adotou um caminho inverso. Disse que, sem mandato, não há prerrogativa de foro e, por isso, o STF não poderia seguir com as ações, pedindo a anulação dos processos por incompetência da Corte. Além disso, afastou a acusação de organização criminosa contra o grupo, evocando como referência o julgamento do mensalão, quando o Supremo diferenciou concurso de agentes de organização criminosa.
O contraste fica evidente. Se no caso de Flávio Bolsonaro a defesa se apoiou na expansão do conceito de foro privilegiado para preservar o senador e ainda conseguiu anular provas fundamentais, agora o bolsonarismo comemora a leitura oposta: a de que a falta de foro deveria levar à nulidade das ações contra os acusados do 8 de janeiro. Essa inversão expõe a contradição entre os interesses circunstanciais do grupo político e a coerência do debate jurídico no Supremo.
Para o advogado criminalista Bruno Salles Ribeiro, sócio da Salles Ribeiro, Palazzi e Martins Advogados, mestre em direito pela USP e coordenador do Grupo Prerrogativas, a posição de Fux destoa do que já foi pacificado pela Corte: “A atual regra de prerrogativa de foro do STF é a seguinte: crimes ligados ao cargo, cometidos durante o mandato. Essa competência se estende mesmo após o fim do mandato. O STF decidiu isso antes do início desse julgamento e reiterou esse posicionamento nos julgamentos do 8 de janeiro. Assim sendo, quando o Min. Fux discorda da competência originária, diverge de posicionamento precedente da Corte. Vale salientar, por fim, que a competência dessas investigações ainda estão ligadas, por conexão, ao inquérito originário do STF, instaurado para apurar ataques à corte.”
A celebração do voto de Fux revela, sobretudo, o uso seletivo de princípios constitucionais por parte do bolsonarismo. Quando se trata de garantir proteção a seus próprios quadros, como ocorreu no caso das rachadinhas, o foro é defendido até em interpretações que ampliam seu alcance. Quando o alvo é a responsabilização de militantes e aliados em uma tentativa de golpe, a ausência de foro passa a ser exaltada como motivo para deslegitimar o processo. A disputa em torno da competência da Corte, portanto, mostra menos apego à coerência jurídica e mais uma estratégia política voltada à sobrevivência do grupo.