Por Vitor Del Rey e Jackson Almeida
A Constituição de 1988 determina que parte da arrecadação do Imposto de Renda deve compor os fundos de participação de Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo fontes centrais para a manutenção das escolas públicas (1). O Fundeb, por exemplo, principal mecanismo de financiamento da educação básica, depende dessas transferências (2). É a partir desse vínculo estrutural que qualquer mudança no Imposto de Renda precisa ser analisada: não apenas como política tributária, mas também o que acarreta políticas estratégicas, como a educação e a equidade étnico-racial.
Nesse contexto, a Câmara dos Deputados aprovou, no último 1º de outubro, o Projeto de Lei 1.087/2025, que amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda para trabalhadores e trabalhadoras que recebem até R$ 5 mil mensais. A medida, se consolidada no Senado, representará um alívio tributário importante para milhões de brasileiros e brasileiras. Trata-se de um avanço na busca por maior justiça fiscal, já que corrige parte de uma defasagem histórica da tabela do imposto.
O texto aprovado (3) reconhece uma renúncia de arrecadação estimada em R$ 25,8 bilhões já em 2026. Para compensar essa perda, a proposta cria dois mecanismos: o Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM), que incide sobre lucros e dividendos recebidos por pessoas físicas de alta renda, e a tributação de dividendos remetidos ao exterior. Embora importantes para aumentar a progressividade do sistema, esses mecanismos ainda dependem de aprovação definitiva no Senado e de regulamentação. Ou seja, não constituem garantias automáticas de proteção ao financiamento de áreas sociais como educação e saúde.
Durante a tramitação, mais de cem emendas foram apresentadas. Algumas buscavam apresentar mecanismos de compensação para Estados e Municípios, de modo a preservar repasses constitucionais vinculados ao Imposto de Renda — que financiam áreas essenciais, incluindo a educação básica (4). Houve também proposta de criação de nova contribuição, destinada à saúde e à educação, como forma de compensar a queda de arrecadação (5). Nenhuma dessas alternativas, contudo, foi incorporada ao texto final.
Isso significa que, até aqui, a lei avança na desoneração tributária, mas não estabelece de forma clara como será feita a recomposição da arrecadação. É nesse vazio que reside o alerta: sem compensação definida, a ampliação da isenção pode, indiretamente, contribuir para a redução de recursos destinados às políticas educacionais e de equidade étnico-racial na educação, que dela dependem.
Esse alerta não é somente teórico. Reportagem publicada pelo portal Metrópoles (6), em 1º de outubro de 2025, mostra que a oposição chegou a propor ampliar a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 10 mil mensais, retirando todas as medidas de compensação da renúncia fiscal. O objetivo declarado era pressionar e desgastar o governo federal, mesmo que, na prática, a medida ampliasse o rombo fiscal e fragilizasse a capacidade do Estado de manter investimentos em áreas sociais. Ou seja, o debate sobre justiça fiscal, quando instrumentalizado politicamente, pode se transformar em ameaça direta ao financiamento da educação pública e das políticas de equidade étnico-racial.
Do ponto de vista técnico, os dados reforçam essa preocupação. O relatório Education at a Glance 2025, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (7), mostra que o Brasil investe, por aluno, muito abaixo da média dos países da organização. O gasto público por estudante da educação básica ao ensino superior é de cerca de US$ 3,8 mil anuais, aproximadamente um terço da média da OCDE. Já o Instituto de pesquisa econômica aplicada (Ipea) (8), em estudo recente sobre o orçamento do Ministério da Educação (MEC), evidencia como o financiamento da educação no Brasil é historicamente frágil e depende de arranjos políticos e fiscais sensíveis, como as emendas parlamentares e as transferências constitucionais. Nesse cenário, qualquer perda, mesmo indireta, de receitas que sustentam a educação pública tem potencial de ampliar desigualdades raciais e sociais.
Esse risco também foi reconhecido no próprio debate parlamentar. O deputado Rogério Correia (PT-MG) advertiu que, se “o andar de cima” for retirado da obrigação de contribuir, “não se possibilita a isenção para os de baixo”. A imprensa, por sua vez, registrou que, sem a taxação das altas rendas, o governo teria de compensar a perda de arrecadação de outra forma: “Se a taxação de quem ganha mais não for aprovada, o governo teria que compensar a perda de arrecadação com cortes em áreas importantes de implantação de políticas sociais, como saúde e educação.” (Portal Verdade, 30/09/2025) (9).
É a partir desse conjunto de elementos técnicos e políticos que o Instituto GUETTO se posiciona. Apoiamos a ampliação da isenção como medida de justiça tributária, mas reafirmamos que a justiça fiscal não pode se dar à custa da justiça social. O Brasil precisa de maior progressividade no sistema tributário, mas também de mecanismos explícitos que assegurem que a educação e as políticas de equidade racial não sejam prejudicadas por eventuais perdas de arrecadação. Afinal, em um país estruturalmente marcado pelo racismo, qualquer debate sobre tributação que não leve em conta seus efeitos sobre a população negra corre o risco de perpetuar desigualdades históricas.
Defendemos, portanto:
1. Mecanismos legais de compensação federativa, que assegurem a manutenção dos repasses vinculados à educação em Estados, Distrito Federal e Municípios.
2. Avaliar propostas alternativas de arrecadação, desde que baseadas em estudos
técnicos de viabilidade;
3. Avaliar a progressividade tributária, na perspectiva da proporcionalidade de contribuição a partir da receita, de modo a participar ativamente das intervenções de redução de desigualdades raciais e sociais.
O Brasil precisa de justiça fiscal. Mas justiça fiscal só se sustenta se caminhar lado a
lado com justiça social. E não há justiça social sem educação pública forte, financiada de
forma consistente e capaz de promover equidade.
Vitor Del Rey é presidente do Instituto GUETTO, sociólogo especialista em educação, cultura, equidade racial, impacto social e ESG. Jackson Almeida é gerente de Políticas Educacionais e Advocacy no Instituto GUETTO, administrador especialista em planejamento e gestão e mestre em administração.
NOTAS
(1) BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Arts. 157–159. Disponível em:: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
(2) BRASIL. Lei nº 14.113, de 25 de dezembro de 2020. Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2020. Disponível em: L14113
(3) BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1.087/2025. Texto aprovado em 01 out. 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra
(4) BRASIL. Câmara dos Deputados. Emenda de Plenário nº 10 ao PL 1.087/2025. Autor: Dep. Mendonça Filho. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra
(5) BRASIL. Câmara dos Deputados. Emenda de Plenário nº 20 ao PL 1.087/2025. Autor: Dep. Diego Garcia. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra
(6) Maria Laura Giuliani. Para desgastar o governo, oposição quer isenção do IR para até R$ 10 mil. Metrópoles, 01/10/2025. Disponível em: Para desgastar governo, oposição quer isenção do IR para até R$ 10 mil
(7) OCDE (2025). Education at a Glance 2025: Indicadores da OCDE. Paris: OECD Publishing. Disponível em: EDUCATION AT A GLANCE 2025
(8) Ipea (2025). Emendas parlamentares ao orçamento do Ministério da Educação: 2014-2024. Brasília: Ipea, 2024. Disponível em: Emendas parlamentares ao orçamento do Ministério da Educação 2014-2024
(9) Para aprovar isenção do IR, oposição quer que governo corte verba de educação e saúde. Portal Verdade, 30/09/2025. Disponível em Para aprovar isenção do IR, oposição quer que governo corte verba de educação e saúde