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A política em tempos de revolução tecnológica

por Chico Alves
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Por João Antonio da Silva Filho*

“Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes, pois implica silenciar tantos horrores!”

(Bertolt Brecht)

A pergunta que se impõe é: a democracia está em crise? Vivemos um tempo de incertezas e sombras, mas as crises sempre acompanharam a história da humanidade — e delas brotaram alguns dos avanços civilizatórios mais decisivos. Foi da tensão entre senhores feudais e burguesia que nasceu a revolução industrial; do embate entre o catolicismo conservador e o Iluminismo que surgiram os Estados Nacionais, as Constituições modernas e a democracia como instrumento de composição das diferenças; do confronto entre liberalismo e comunismo, após a Segunda Guerra Mundial, que emergiu o Estado de Bem-Estar Social. As contradições, portanto, não representam um mal em si: carregam potência transformadora e, ao longo da história, abriram caminhos para o novo.

O tempo presente não é apenas marcado por disputas ideológicas, mas por algo mais profundo: a revolução tecnológica. Vivemos, como definiu Antonio Gramsci, um interregno — o velho ainda não desapareceu e o novo ainda não se instalou plenamente. Nenhum especialista é capaz de prognosticar com segurança o futuro, mas é evidente que a revolução em curso está alterando radicalmente a economia, a política e a própria forma de viver em sociedade.

A disputa pelo poder sempre existiu e assumiu formas distintas. A mais antiga é a força bruta, sustentada pelo medo e pela repressão, típica de regimes autoritários. Outra é a manipulação populista, baseada em promessas ilusórias e simplistas, que exploram os anseios da população sem oferecer soluções concretas. A forma mais legítima, porém, é aquela que se desenvolve no âmbito do Estado Democrático de Direito, quando projetos e ideias se confrontam em debates públicos. Para que esse modelo prospere, é necessário que a sociedade seja politicamente educada, capaz de distinguir propostas viáveis de engodos retóricos.

A história, contudo, nunca esteve livre de autocratas nem deixou de ser seduzida pelo populismo. Embora a democracia tenha se expandido, jamais foi hegemônica, pois a política se move menos pelas conquistas concretas e mais pelas expectativas — facilmente manipuláveis. No Brasil, políticos inescrupulosos exploram o mito do enriquecimento rápido e disseminam a crença de que o sucesso é resultado exclusivo do mérito individual. Esse discurso, amplificado pelas redes sociais e pelas Big Techs, reforça um individualismo competitivo que enfraquece a noção de coletividade. Interesses corporativos se sobrepõem às demandas sociais, e a solidariedade é distorcida, apresentada não como pilar da vida em comum, mas como obstáculo ao progresso.

Na economia, a revolução tecnológica produziu transformações profundas. A riqueza já não depende necessariamente da produção material. Dora Kaufman, em sua obra Desmistificando a Inteligência Artificial, ilustra essa mudança ao comparar trajetórias: a GM levou 70 anos para lucrar 11 bilhões de dólares com 840 mil funcionários; o Google, em apenas 14 anos, alcançou 14 bilhões com 38 mil empregados. A Kodak, que chegou a ter 145 mil trabalhadores, decretou falência em 2012 com 19 mil, enquanto, no mesmo ano, o Instagram, com apenas 13 funcionários, foi vendido por 1 bilhão de dólares. Esses números revelam como o capital informacional reorganiza a acumulação de riqueza, concentra poder e amplia desigualdades.

Na política, as redes sociais e seus algoritmos não privilegiam o que fortalece a vida coletiva, mas aquilo que gera engajamento, curtidas e compartilhamentos. O que move as grandes plataformas não é a consistência nem a verdade, mas o impacto emocional e a capacidade de viralização — é o sensacionalismo que alimenta o lucro das Big Techs. Nesse ambiente, as notícias falsas encontram terreno fértil, a opinião pública torna-se vulnerável à manipulação e o debate democrático enfraquece. A força bruta vai sendo gradualmente substituída pela manipulação digital, em nome de uma liberdade apenas aparente, mediada por algoritmos que servem ao capital global. O processo político, nesse contexto, afasta-se da participação cidadã e transforma-se em espetáculo, cada vez mais capturado por ilusões.

Os desafios são imensos. Como enfrentar o poder do dinheiro, que manipula expectativas e controla a opinião pública? Como realizar um diálogo honesto com a sociedade sem recorrer a falsas promessas? Como democratizar o espaço digital para que ele atenda ao interesse público e não apenas aos de grandes corporações?

Se, no passado, a disputa pelo poder se exercia fundamentalmente pela força ou pela manipulação direta da palavra, hoje ela se transfere para o território invisível dos algoritmos. As redes sociais remodelaram o espaço público: aquilo que antes tinha como protagonistas as instituições, os partidos, os parlamentos e a imprensa tradicional, agora se pulveriza em bolhas digitais movidas por emoções, impulsos e promessas imediatas. Nesses ambientes, a impessoalidade domina, e o critério já não é a verdade, mas a capacidade de engajar, viralizar e capturar a atenção — a qualquer custo — das massas.

Da Ágora ao agora, muitos desafios foram superados. Mas o Estado Democrático de Direito enfrenta obstáculos inéditos. O desafio democrático, portanto, é duplo: conter o poder quase ilimitado das grandes corporações digitais e, ao mesmo tempo, formar uma cidadania capaz de distinguir informação de manipulação. A política precisa recuperar sua centralidade, sem se render à lógica algorítmica do imediatismo e da superficialidade. O futuro da democracia dependerá da coragem de transformar a tecnologia em instrumento de emancipação coletiva — e não em uma sofisticada engrenagem de dominação.

* Mestre em Filosofia do Direito e Doutor em Direito Público, Conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e Vice-Presidente da Atricon. Atuou em diversas funções públicas e é autor de obras voltadas à democracia, ao Estado e ao controle institucional.

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