ouça este conteúdo
00:00 / 00:00
1x
Toni Morrison dizia que a mais grave e eficaz função do racismo é a distração, pois ele impede os indivíduos de fazerem o trabalho necessário e os força a gastar energia explicando repetidamente a sua própria existência e razão de ser. Não dá para concordar mais com a nobre escritora. Não à toa Prêmio Nobel de Literatura em 1993.
O Brasil está testemunhando um momento histórico. Pela primeira vez em séculos generais e um ex-presidente sentam-se no banco dos réus por tentativa de golpe, num país construído em séculos de golpes, traições e covardias, mas o que balança as redes da comunidade negra neste ponto de virada é … a parditude e etc e etc e etc…
Não que este debate não seja relevante. Longe disso! Ele é definidor de muita coisa séria no país mais negro fora da África. Aliás, só podemos afirmar isso porque negros, no Brasil, são os pretos e pardos juntos. A população mestiça que, apesar da “passabilidade”, também sofre das sequelas desta doença chamada racismo de maneira intensa e traumatizante. Algo tão encarniçado e encruado no tecido social brasileiro, que não há dinheiro ou paleta de cor que blinde totalmente.
A questão é que há meses acontece um embate infrutífero e incessante que tem no foco as pessoas negras de pele mais clara. Um movimento… separatista? reivindicador de identidade? rancoroso? O que quer que seja é algo mais prolixo e cheio de segundas intenções que o discurso de Luiz Fux no julgamento dos golpistas. Réplicas, tréplicas, discursos e mais e mais e mais… para justificar o injustificável.
Tanto aplauso para quem não tem base teórica, lastro histórico de vida, estudo e reflexão atraiu o abismo para um tema que já é historicamente tenebroso. O resultado é uma tentativa de cooptação pela extrema direita de matéria fundamental, mas já encaminhada por mais velhos e mais velhas que tanto brigaram para que alcançássemos as políticas públicas em andamento no Brasil e outros direitos. Gente graúda e forjada num fogo que a maioria nem imagina qual seja.
A consequência de tanta irresponsabilidade e, em certos casos, infantilidade; e, em outros casos, má fé, pode ser nefasta, pois temos uma parcela gigante da população completamente perdida em um ponto anterior a tudo isso: sua própria noção de cidadania, sentido de viver e humanidade.
A última década trouxe pessoas muito próximas acreditando em todo tipo de fábula desencantada e distópica. Desde as mais anedóticas, como a Terra plana, até as mortais como a negação de vacinas. Perdemos direitos trabalhistas, perdemos capacidade de dialogar com as novas gerações sem a interferência de muito lixo mentiroso, produção dessas propriedades privadas que são os grandes conglomerados tecnológicos estrangeiros; perdemos uma parcela grande da sociedade para a descrença na educação e na cultura como valores de edificação não apenas profissional, mais humana.
Adivinhem quem está no centro do alvo de tanta desesperança e também da escala 6×1, da uberização da vida, da fanatização … adivinhem quem está na mira preferencial da arma empunhada seja pela polícia, pelo bandido, pelo vizinho que comprou armamento licitamente e se acha o Batmam justiceiro… Adivinhem?
O alvo prioritário é a soma de pretos e pardos que perfazem mais da metade das 200 milhões de vidas que respiram por aqui, a população negra.
A hora é agora! Agora que existem juristas competentes em quantidade, especialistas de toda ordem, pessoas com capacidade de análise, comunicação e visibilidade para falar com uma massa que precisa urgentemente entender o que é essa tal democracia, para quê afinal servem as instituições democráticas, como funciona o judiciário, o legislativo e o executivo; o que é soberania nacional; no que tudo isso afeta sua vida.
A maioria esmagadora não faz ideia do que seja uma tentativa de golpe. Repete feito matraca frases feitas e mal embrulhadas por oportunistas. A mídia, as escolas e universidades não são suficientes para este aprendizado.Todo mundo gosta de repetir o “é nós por nós”, mas quem é esse “nós”? E como se faz essa rede, esse pacto de luta em uma nação que não está e nunca esteve disposta a ceder espaço entre os privilegiados para pessoa negra alguma, esteja ela onde estiver na tabela de gradação de tons de pele.
Numa hora dessas é o colorismo e afins que faz cada vez mais rarefeita e vazia essa primeira pessoa do plural, pois não importa a nomenclatura que se dê, o efeito prático é sempre o mesmo há 500 anos: Precariedade, exclusão e morte para os mesmos.
Toda essa polêmica é a distração implodindo o trabalho, num randômico, cansativo e nauseante serviço de ficar explicando repetidamente a própria existência e razão de ser.
Não é mesmo, Mrs. Morrison?