Não é de hoje que o cidadão médio apoia as chacinas resultantes da atuação de policiais contra os chamados “bandidos”. Desde a chacina da Candelária, em 1993, quando 8 jovens foram assassinados por PMs, uma parte da opinião pública se manifesta em apoio ao extermínio — talvez incrédula de que ainda tenhamos uma política de segurança pública digna desse nome.
Foi assim na chacina de Vigário Geral, naquele mesmo ano de 1993, quando 21 homens foram fuzilados pela polícia, e em outros 48 banhos de sangue que se sucederam em território fluminense até 2022. Sempre que o caso ganhava repercussão nacional, uma grande parcela dos brasileiros manifestava sua aprovação à aplicação prática da tese de que “bandido bom é bandido morto”.
Por isso, a concordância de uma parte da população com a matança ocorrida no Complexo da Penha, em que 117 pessoas foram executadas pela polícia de Cláudio Castro, embora revoltante, não chega a surpreender.
O que é novidade neste novo episódio trágico do cotidiano fluminense é a leniência da imprensa com as autoridades que perpretaram a chacina e a falta de assombro com o ocorrido.
Foram incontáveis as vezes que analistas repetiram o mantra de que a operação policial era “necessária”, mesmo cientes de que a estratégia foi desenhada para matar os suspeitos e não prendê-los. O fato de que a legislação brasileira não prevê a pena de morte não foi suficientemente destacado.
A série de ilegalidades cometidas pelos policiais na operação no Complexo da Penha também não teve o devido espaço no noticiário. O fato de o local das mortes não ter sido preservado para a perícia, a constatação de que os corpos não foram retirados da mata pelos PMs, a proibição do trabalho da Defensoria no Instituto Médico Legal e outras transgressões cometidas pelas autoridades deveriam ter maior espaço.
Em vez disso, muitas TVs, sites e jornais deram visibilidade predominante ao governador Cláudio Castro e seus auxiliares da área da segurança, que disseram sandices de todo tipo. A começar pelo próprio Castro, que, mesmo antes de começar qualquer investigação sobre o caso, declarou que os únicos inocentes mortos na operação foram os policiais.
Mais recentemente, jornalistas importantes assumiram uma atitude ainda mais intrigante.
Depois que o presidente Lula se referiu à operação policial nos complexos da Penha e do Alemão como “matança”, vários programas de rádio e TV, sites e jornais passaram a criticá-lo por usar o termo. Para uns, a palavra foi inadequada politicamente, para outros contraria o que pensam os entrevistados nas pesquisa de opinião e houve ainda quem achasse imprecisa.
Ora, se não pudermos chamar uma ação policial que resulta em 117 cadáveres de matança, quando o faremos?
Voltemos à referência de todos aqueles que trabalham com a Língua Portuguesa, o dicionário. Assim define o Michaelis o significado da palavra “matança”: ato ou efeito de matar com extrema violência, chacina; e assassínio de várias pessoas simultaneamente; carnificina.
Resta alguma dúvida?
Além do antipetismo que é a marca da grande imprensa nacional, a crítica à fala do presidente revela algo ainda pior: de olho em pesquisas de opinião e preocupados com ataques da extrema direita e eventual perda de audiência (ou patrocínio), jornalistas abdicam de chamar o episódio mais bárbaro da história recente do Brasil pelo verdadeiro nome.
Já no dia seguinte à ação da polícia, seis dias antes da declaração de Lula, o portal ICL Notícias usava o termo adequado, como na matéria ‘É uma tragédia anunciada, o governador avisou’, diz líder comunitário após matança no Complexo da Penha.
Essa camuflagem vocabular de grandes veículos de comunicação trai um dos principais compromissos do jornalismo, que é a busca incessante pelas palavras que mais fielmente retratem o fato noticiado.
Para quem abriu espaço tão generoso às autoridades responsáveis pelo massacre — assumindo, inclusive, a mentira repetida por elas de que a ADPF das Favelas impediu a policia de combater o tráfico — e mostrou tão pouco as vozes dissonantes de estudiosos sérios de segurança e defensores dos Direitos Humanos, a traição vocabular é apenas mais uma.
Essa cobertura é um triste marco para a imprensa brasileira, que deixa ainda mais desamparada a população das favelas. Moradores enxergam nos jornalistas um dos poucos canais de denúncia e pedido de socorro. Talvez agora nem isso.
Quem pensa duas vezes antes de chamar a matança de “matança” está amenizando a culpa dos matadores, tripudiando da dor das famílias e criando condições para que o próximo massacre bata um novo recorde macabro.
Decididamente, não deveria ser esse o papel da imprensa.