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A histórica ressaca do Jair

por Lindener Pareto
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Como historiador que teve o privilégio duvidoso de testemunhar a História em movimento, confesso que quando a notícia da condenação chegou, não senti o alívio que esperava. Talvez porque, depois de tantos anos observando o desenrolar dos acontecimentos, eu já havia aprendido que a justiça, quando finalmente chega, traz com ela não apenas a satisfação do dever cumprido, mas também uma melancolia profunda pelo tempo perdido, pelas feridas abertas, pela constatação de que algumas cicatrizes jamais se fecharão completamente.

Hoje, em minha bagunçada biblioteca, cercado por livros que narram outras quedas de outros déspotas, não pude deixar de pensar nas contradições dos fatos. Aquele que se apresentou como messias revelou-se falso profeta; aquele que bradava amor à pátria mostrou-se o mais antipatriótico dos presidentes; aquele que prometeu ordem trouxe apenas caos e divisão. E agora, diante da condenação, experimentamos não apenas a euforia da vitória, mas a ressaca amarga de quem bebeu demais do cálice da desilusão.

Durante quatro longos anos, assistimos a um espetáculo grotesco que desafiava não apenas as leis, mas a própria lógica dos direitos mais básicos das sociedades. Como historiador, eu havia estudado tiranos e demagogos, mas nunca imaginei que presenciaria no Brasil –  em pleno século XXI e décadas depois da última Ditadura –  um presidente que faria da mentira uma política de Estado, que transformaria a ciência em inimiga, que converteria a morte em estatística conveniente para seus propósitos políticos.

Foram anos de uma angústia particular que só nós, estudiosos e viventes/sofrentes da História, podemos compreender plenamente: a de ver as permanências do passado, de reconhecer nas entrelinhas dos discursos os ecos de outras épocas sombrias, de gritar alertas que pareciam ecoar no vazio. Quantas vezes não me peguei relendo os grandes mestres da suspeita, buscando nas páginas sobre a banalidade do mal algum consolo para o que testemunhávamos diariamente?

A condenação, quando finalmente veio, trouxe consigo uma sensação estranha. Era como se a História, uma senhora sem pressa e por vezes lenta, tivesse finalmente ajustado suas lentes e enxergado com clareza o que muitos de nós víamos há tanto tempo. Mas junto com a satisfação veio também a melancolia de constatar quanto tempo levamos para chegar até aqui, quantas vidas se perderam pelo caminho, quanta confiança nas instituições todos perdemos, mesmo que o STF tenha dado motivos mais do que evidentes de que temos e teremos a efetiva oportunidade de revisitar nossas dores e traumas coletivos.

Bolsonaro não foi apenas um presidente ruim, ele foi um fenômeno histórico que expôs as fraturas mais profundas de nossa sociedade, cruel e ironicamente, ele foi o presidente mais didático e escancarado do autoritarismo brasileiro. Apresentou-se como salvador, mas foi algoz. Prometeu ordem, mas seminou caos. Jurou defender a família, mas dividiu famílias. Bradou amor ao Brasil, mas envergonhou o país diante do mundo.

Reconheçamos nele os traços clássicos do demagogo: a retórica simples que apela aos instintos mais vis, a capacidade de transformar complexidades em slogans, a habilidade de fazer com que seus seguidores se sintam simultaneamente vítimas e escolhidos. Mas havia algo particularmente brasileiro em sua performance, algo que tocava em feridas antigas de nossa formação nacional: o autoritarismo cordial, o machismo disfarçado de tradição, o racismo mascarado de patriotismo.

A tentativa de reescrever a História e a memória foi, talvez, seu crime mais insidioso. Não bastava governar mal o presente, era preciso contaminar o passado e hipotecar o futuro. Vimos a inversão orwelliana em tempo real: a ditadura militar transformada em período áureo, a tortura relativizada, os mortos e desaparecidos políticos transformados em nota de rodapé inconveniente.

E agora, diante da condenação, experimentamos essa estranha ressaca. Não é a ressaca da festa, mas a ressaca de quem bebeu demais do cálice da indignação, de quem se embriagou de esperança e desilusão em doses alternadas durante anos a fio. É a ressaca de quem viu a tal democracia cambaleando e não pôde deixar de sentir medo.

A justiça chegou, sim, mas chegou tarde demais para algumas coisas. Tarde demais para os mais de 700 mil mortos pela COVID-19, muitos dos quais poderiam ter sido salvos com políticas públicas responsáveis. Tarde demais para as famílias que se desfizeram em discussões políticas irreconciliáveis. Tarde demais para a confiança que muitos brasileiros perderam nas instituições, na ciência, na própria possibilidade de diálogo ponderado.

A História não se move em linha reta, os avanços e retrocessos fazem parte de sua natureza. Sei também que as sociedades têm uma capacidade surpreendente de se ressignificar, de quiçá aprender com seus erros, de construir sobre os escombros de suas próprias ilusões. Mas isso não torna menos melancólica a constatação de que precisamos passar por tudo isso para chegar onde chegamos.

A condenação de Bolsonaro não é apenas o fim de um ciclo político, é o encerramento de um capítulo sombrio de nossa história republicana. Um capítulo que precisará ser estudado, compreendido e, principalmente, lembrado, relembrado, denunciado. Registremos não apenas os fatos, mas também os sentimentos, as angústias, as esperanças que marcaram esses anos.

Precisamos contar às gerações de ontem, de hoje e de amanhã como foi viver sob um governo que fez da mentira método, da crueldade política e da ignorância uma virtude. Precisamos explicar como um país inteiro pode ser corroído por dentro, como instituições podem ser testadas até quase o limite da ruptura, como a sociedade pode se dividir de forma aparentemente irreconciliável.

Mas também precisamos contar como resistimos, como as instituições, mesmo abaladas, cumpriram seu papel, como a sociedade civil se organizou, como parte da  imprensa livre se manteve vigilante, como a justiça, mesmo lenta, chegou.

A ressaca da condenação de Bolsonaro é também a ressaca de uma sociedade que precisa se olhar no espelho e reconhecer suas próprias contradições. É o momento de reflexão que vem depois da tempestade, quando contamos os danos e começamos a nos refazer. É melancólica, sim, mas também necessária.

Como historiador que testemunhou esses tempos, posso dizer que a História seguirá seu curso, implacável e justa à sua maneira. E talvez, daqui a algumas décadas, quando outros historiadores escreverem sobre este período, possam dizer que, apesar de tudo, a democracia brasileira saiu mais forte desta provação. Que a justiça, mesmo tardia, prevaleceu. E que nós, que vivemos esses anos difíceis, soubemos transformar a ressaca da desilusão em combustível para a reconstrução.

Por ora, resta-nos a melancolia de quem viu a História em movimento e sabe que algumas feridas demoram gerações para cicatrizar completamente. Mas resta-nos também a esperança de quem sabe que a luta e a coragem da verdade, por mais que demorem, sempre encontram seu caminho.

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