Casa EconomiaA guerra suja

A guerra suja

por Jose Socrates
0 comentários
a-guerra-suja

A filosofia política de Thomas Hobbes é, toda ela, construída com base num único ponto de apoio — o “medo da morte violenta”, que o filósofo considerou como sendo o mais instintivo, o mais forte e o mais dominante sentimento humano. O Estado, segundo ele, nasce deste pavor: receando pela sua vida e pelos seus bens, os indivíduos abdicam de parte da sua liberdade individual, que existia no estado de natureza, e transferem-na para uma poderosa entidade — o Estado civil ou Leviatã — que, com todo o seu poder, garantirá a segurança de todos.

Quatro séculos depois grande parte do debate democrático ainda anda a volta destas duas palavrinhas — quem vem primeiro, a liberdade ou a segurança? A qual dos valores deve o Estado dar prioridade? Será a segurança a primeira das liberdades, ou nunca haverá segurança sem liberdade?

Para mim, a intervenção policial no Rio de Janeiro foi uma barbaridade; para outros, este tipo de violência estatal é a única forma de responder ao crime organizado. Deixem-me argumentar: não acredito num Estado que aja fora da lei. Esse Estado nunca oferecerá segurança, mas medo — e será sempre uma questão de tempo até essa violência arbitrária um dia nos bater nos à porta. É assim que vejo a tragédia do Rio de Janeiro: não é apenas um falhanço do Estado, mas uma perigosa deslegitimação moral do Estado.

Há quem pense que as ações de exceção acabarão por ser compreendidas e aceites com os resultados positivos que produzirem — uma espécie de legitimidade em exercício, dizem. Mas não é assim. Infelizmente, não é assim: a história da violência social nas favelas tem mostrado que estas operações não conduzem à redução do crime, mas ao escalar da violência. Depois destas mortes, mais mortes virão. Estas carnificinas são apenas a naturalização da violência.

O espetáculo dos corpos alinhados impressiona muito, mas também impressiona o discurso político sobre a operação. A lamentável desumanidade do discurso do governador desconsiderando as vítimas que não fossem polícias, diz muito do ponto a que chegámos neste debate. O que parece é que o estado do Rio de Janeiro desistiu do direito soberano e passou a usar o direito militar.

O Estado não agiu contra cidadãos suspeitos, mas contra inimigos. O uso da força não teve a ver com a culpa mas com a pertença ao outro lado. A força letal não foi usada como última ratio, mas como primeira. O Estado não esteve a combater o crime, esteve em guerra — e com os seus próprios cidadãos. Acontece que a guerra não é justiça, nem é a política por outros meios, a guerra será sempre o fracasso da política. E não há guerras santas, só guerras sujas. Esta foi especialmente suja.

você pode gostar