Casa EconomiaA guerra dos homens e o luto da mulher

A guerra dos homens e o luto da mulher

por Lindener Pareto
0 comentários
a-guerra-dos-homens-e-o-luto-da-mulher

Nas fotografias desbotadas das guerras totais que marcaram os séculos, uma imagem se repete com a constância de uma tragédia anunciada: a mulher que chora seus mortos. Seja na Europa devastada do pós-guerra ou nos campos ensanguentados da América Latina, quando a carnificina cessa e os homens depõem suas armas, são as mães, as esposas, as filhas, que recolhem os estilhaços da vida. Elas pranteiam seus filhos, seus maridos, seus irmãos, em um ritual de dor que parece ser a herança mais duradoura da condição humana. No Complexo da Penha, em outubro de 2025, essa cena recorrente adquiriu uma dimensão ainda mais brutal. As mães não apenas carregaram o luto: elas, literalmente, carregaram os corpos. Entraram na mata, desafiaram o medo e a autoridade, para resgatar a dignidade final de seus filhos, arrancados da vida pela violência de Estado.

Enquanto essas mulheres desciam o morro com o peso insuportável de seus filhos nos braços, os homens do poder, engravatados e seguros em seus palácios, proferiam suas sentenças. Reunidos no famigerado “Consórcio da Paz” — um nome que soa como um escárnio diante da pilha de corpos —, os governadores, em sua esmagadora maioria homens, não hesitaram em apontar as culpadas: as mães. “Elas falharam”, ecoou a voz do patriarcado, “não souberam educar seus filhos”. A culpa, essa velha ferramenta de opressão, foi mais uma vez lançada sobre os ombros daquelas que já carregavam o mundo.

Mas a História, essa senhora paciente e cuidadosa, nos conta uma verdade oposta. Na longa narrativa do patriarcado, as mães cuidam, preparam, amparam. Elas tecem a rede de afeto e cuidado que tenta proteger suas crias das garras do mundo. São os filhos, no entanto, que são tragados pelos processos disciplinares das múltiplas e variadas guerras feitas pelo capital e por seus agentes. São engolidos pela engrenagem que os quer como mão de obra barata, como soldados do tráfico, como estatística na mira da polícia ou como policial que aplica a sentença brutal. A fala que acusa a mãe que “não soube escolher o parceiro” ignora deliberadamente a ausência paterna estrutural, a mesma que sobrecarrega e isola essas mulheres, deixando-as sozinhas na trincheira do cuidado.

Não nos iludamos. Chamar de “guerra” o que acontece nos morros do Rio é uma distorção conveniente. A guerra aparente, a do fuzil contra fuzil, esconde uma outra, mais profunda e antiga: a guerra contra os corpos pretos, pardos e pobres que, desde a abolição inconclusa, marcam a História do Brasil. É uma guerra de extermínio, seletiva e sistemática, que se renova a cada operação policial, a cada “sucesso” celebrado sobre cadáveres. E, em paralelo, trava-se uma guerra constante contra as mulheres e seus cuidados, contra a potência da vida que elas representam e defendem.

Os corpos enfileirados no chão da praça são, invariavelmente, de homens jovens. As falas que justificam o massacre, que celebram a morte, que prometem mais força e mais “paz” através da violência, são também dos homens. O governador que chama a chacina de “sucesso”, os políticos que culpam as mães, os policiais que se orgulham da “faca na caveira”. É o ciclo infindável do macho e sua guerra, da virilidade que se afirma pela destruição. A mãe do policial morto, em seu pranto, acusa o mesmo governador, o mesmo homem, a mesma lógica bélica que vitimou seu filho. Em todas as pontas, o luto tem um rosto feminino.

É preciso quebrar esse espelho. É preciso desarmar a mão que aponta a arma e a boca que profere a sentença. O homem e a guerra, o macho e sua faca na caveira, precisam acabar. Enquanto isso não acontece, restarão as mães. As que choram, as que lutam, as que enterram e as que, com uma força que desafia a própria dor, carregam seus filhos de volta para casa, nem que seja pela última vez. Elas são a memória viva de que, antes da guerra, havia um cuidado. E que depois dela, apesar de tudo, ainda haverá o luto. E o luto, no coração de uma mãe, de uma mulher, deverá ser a chama da revolução que todos os homens precisamos.

Rio de Janeiro (RJ), 29/10/2025. Dezenas de corpos de homens são levados por moradoras e moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil.

você pode gostar