Por Amanda Cotrim – Buenos Aires
O presidente argentino Javier Milei, autoproclamado “leão libertário”, chega às eleições legislativas de meio de mandato, no dia 26, com o rugido enfraquecido. Cercado por escândalos de corrupção envolvendo aliados próximos – entre eles, sua irmã e secretária presidencial, Karina Milei -, o governo que prometia varrer a “casta política” e refundar a Argentina enfrenta agora fraturas internas, queda na popularidade e uma crescente crise social. Ainda assim, aposta em seu núcleo duro, na tradicional polarização argentina e na figura de Donald Trump para pedir mais “paciência” ao eleitor pelos próximos dois anos.
No Congresso, a extrema direita alçada ao poder com Milei vive em modo de estagnação. Se no primeiro ano de mandato o governo conseguiu aprovar — em versão reduzida — sua Lei de Bases, suas ambições econômicas no parlamento pararam por aí. Milei tem governado sob decretos, os quais permitiram, entre outros, cortes de subsídios, desregulação da economia e revogação de leis vigentes.
Sem maioria parlamentar, o segundo ano de Milei se estagnou. Incapaz de articular apoios, a sigla Liberdade Avança não avançou em temas cruciais para o presidente, como o apoio de governadores, a manutenção de vetos, o controle da desvalorização do peso e da demanda por dólar, contraindo em abril mais um empréstimo milionário junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
As eleições deste domingo são, portanto, uma oportunidade de o governo ampliar sua bancada — metade da Câmara e um terço do Senado serão renovados, com 127 novos deputados e 24 senadores. Mais do que cadeiras, o pleito servirá como um termômetro político.
“Essa eleição medirá o desgaste do governo e a reação da população às medidas econômicas até aqui. Também será uma projeção para 2027; uma prova de fogo para Milei”, diz o cientista político Alejo Pasetto, em entrevista ao ICL Notícias.
Analistas ouvidos pela reportagem também se perguntam se finalmente surgirá uma terceira força- tantas vezes mencionada na política argentina- mas nunca consolidada nas urnas, representada por blocos hoje fragmentados, como o novo Províncias Unidas, que se autodefine como de centro, e pode atuar como aliado ou oposição estratégica ao governo.
Voto de apoio ou de castigo
Apesar das bandeiras de Milei, como o superávit fiscal e a desaceleração da inflação — que caiu de 25% para cerca de 2% ao mês —, a Argentina enfrenta desemprego crescente (7,6%), queda do poder de compra e congelamento salarial, além de uma crise social que tem levado milhares de argentinos às ruas para protestar. “Há uma desconexão total entre o discurso oficial do presidente e a realidade na qual vive a maioria dos argentinos”, afirma Pasetto.
Para muitos argentinos, um único salário já não basta. É o caso de Adriana Romero, 32 anos, que de manhã trabalha em uma concessionária de automóveis, à noite conserta celulares em uma loja, além de vender perfumes por catálogo e administrar as redes sociais de uma pizzaria. “O salário não alcança. Tenho praticamente quatro trabalhos”, conta.
A consultoria Equilibra estimou que, nos primeiros 18 meses de governo Milei, cerca de 500 mil empregos foram perdidos. O poder de compra também despencou: aposentados tiveram perda real de 12%, enquanto servidores públicos nacionais perderam até 35%.
De acordo com um relatório da respeitada Universidade Torcuato Di Tella, a confiança da população no governo caiu 8,2% em setembro, uma mês antes do pleito de outubro.
“Um salário só não é suficiente. Sem dúvida, é o pior governo da história”, afirma Gustavo, funcionário público que prefere não revelar o sobrenome. Para complementar a renda, ele dá aulas de tênis em um clube e espanhol online.
O descontentamento com a deterioração da qualidade de vida e a forma como os argentinos avaliam a condução econômica tendem a guiar o voto. “Muitos acreditaram que ganhariam em dólar, e isso não aconteceu e nem deve acontecer”, considera. Saberemos se será um voto de apoio ou de castigo. O resultado mostrará o nível de paciência social”, diz Possetto.
No Congresso, Milei acumula derrotas e depende de alianças circunstanciais, como a tensa relação com o PRO, partido do ex-presidente Mauricio Macri,- expoente da direita argentina- para avançar em sua agenda.
Segundo o cientista político Sergio Morresi, do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas), uma vitória expressiva da sigla de Milei é improvável, mas manter a atual bancada já seria um êxito para o governo. “Isso garantiria a preservação de vetos e a aprovação de medidas mínimas, com ao menos um terço dos votos legislativos. Tudo indica que, se o governo vencer, será uma vitória pequena”, avalia.
Trump: símbolo e risco
Milei aposta também no apoio internacional, em especial do ex-presidente Donald Trump, para reforçar sua imagem de “governo liberal e moderno”. Morresi, no entanto, lembra que a Argentina mantém uma histórica resistência à influência estrangeira, sobretudo dos Estados Unidos. “O velho anti-imperialismo ainda está vivo. Milei parece esquecer que o argentino tolera quase tudo, menos tutelas externas”, observa o pesquisador.
Principal força de oposição, o peronismo ainda tenta se recompor após a derrota presidencial de 2023 e a condenação de Cristina Fernández de Kirchner. A ex-presidente foi condenada a seis anos de prisão por corrupção e cumpre prisão domiciliar desde junho. Sem liderança clara, parte do eleitorado desencantado pode simplesmente se abster.
Em setembro, nas legislativas provinciais de Buenos Aires, quase 40% dos eleitores não foram votar, um índice de abstenção que pode se repetir agora, reflexo de um eleitor que não se sente representado nem pelo peronismo nem pelo mileísmo. “A abstenção será o grande desafio. Muitos não votaram no peronismo em 2023 e tampouco se sentem motivados a apoiar Milei agora”, avalia Pasetto.
Para Morresi, contudo, o peronismo soube explorar as divisões internas do governo, especialmente após vencer as eleições provinciais de Buenos Aires. “O governo Milei sofre de uma enorme debilidade, que o levou a cometer muitos erros. Um dos momentos mais críticos foi com os EUA. Ainda que o câmbio do dólar se mantenha relativamente estável, a inflação continua alta e a economia segue problemática”, pondera.
Embora a política argentina seja conhecida por seu dinamismo, bem como a volatilidade do dólar- problema crônico no país-, a maioria das pesquisas indica que Milei não deve perder as bancadas conquistadas. Resta saber se conseguirá ampliá-las.