Casa EconomiaDo prazo perdido ao Estado precarizado: por que a reforma administrativa descarrilou

Do prazo perdido ao Estado precarizado: por que a reforma administrativa descarrilou

por Jorge Mizael
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O atraso que virou método

O roteiro prometia celeridade e transparência. Em 28 de maio de 2025, a Câmara instituiu o Grupo de Trabalho (GT) da reforma administrativa com um cronograma explícito: apresentar relatório e textos finais até 14 de julho de 2025, antes do recesso. Não apresentou. Veio o recesso, veio agosto, setembro, outubro e a sociedade continuou sem acesso aos documentos. Em lugar de textos oficiais, surgiram fragmentos circulando informalmente em grupos de WhatsApp, “rascunhos”, acenos. O GT terminou de forma melancólica: prazos não cumpridos, debate semiclandestino e sem protocolo de proposição legislativa no sistema da Câmara. Quando a própria discussão legislativa migra para o off, quem perde é o controle social. Se o processo é opaco, o conteúdo que emerge por frestas merece escrutínio redobrado.

O GT e o “fichário panfletário”

Ao público foi oferecido um fichário volumoso: carta aberta, slogans sobre “acabar com privilégios”, “eficiência” e “digitalização”, e centenas de páginas que mal definem o problema e quase não se debruçam sobre o funcionamento real do Estado e do serviço público. O discurso do “modernizar” contrasta com a ausência de textos formais, de nota técnica seriada e de avaliação de impacto. A crítica não é contra a ideia de reformar, mas contra reformar assim: sem diagnóstico preciso, sem transparência e sem governança do processo. O que está em jogo é o desenho do Estado e aqui mora o risco federativo.

Pilar 1 — Pacto federativo sob ataque

Os novos incisos constantes da minuta de PEC ainda não apresentada formalmente do art. 22 propõem que a União “defina normas gerais” sobre gestão de pessoas, organização administrativa, governança, governo digital e controle. A promessa de padronização esconde uma padronização forçada, que reduz a responsividade local e desconsidera capacidades distintas de estados e municípios. Na prática, transfere-se para Brasília a moldura de regras que devem dialogar com realidades muito diferentes, do município metropolitano complexo ao pequeno ente com quadro técnico enxuto. O resultado previsível é conflito jurídico-político e engessamento das escolhas locais, invertendo a lógica cooperativa que o Brasil vem tentando consolidar. Se a decisão é tomada de forma verticalizada, o resto vira execução subordinada, inclusive orçamento e gestão de pessoas.

Pilar 2 — Limites orçamentários replicados

O art. 28-A pretende replicar um teto de gastos aos estados a partir de 2027, atrelado à inflação e a variações da receita. A fórmula única ignora heterogeneidades regionais e ciclos setoriais: diante de queda de arrecadação com demanda crescente (saúde, educação, segurança), o combo “teto rígido + pressão social” comprime políticas e empurra governadores e prefeitos a cortar.

Grave é que o 28-A também viola o plano do próprio GT: na página 10, o documento chamado de “Premissas reforma administrativo_v13 -1” diz que “Ajuste Fiscal/Meta de Ajuste Fiscal não serão tratados”, exceto “se o Presidente Hugo Motta determinar”. Onde está esse ato? Sem a determinação formal que adite o escopo, o GT rompe as regras do jogo que ele próprio anunciou e injeta por frestas um ajuste fiscal estrutural sob o rótulo de “reforma administrativa”. E quando a torneira aperta por norma centralizada e sem lastro procedimental, começa-se a mexer nos alicerces do serviço público.

Ingresso e cargos: a erosão da isonomia por atalhos

A possibilidade de concursos nacionais e de ingresso direto em níveis intermediários/superiores (até 5%) cria circuitos paralelos à regra geral do mérito e quebra a isonomia entre candidatos. A promessa de “agilidade” vira atalho: carreiras deixam de ter um campo de entrada definido e começam a conviver com exceções que favorecem quem já chega mais perto do topo. Isso tende a desalinhar trajetórias, criar ilhas de privilégio interno e fragilizar a legitimidade dos concursos como mecanismo universal. Carreiras que começam tortas, terminam instáveis.

Carreiras e desempenho: métricas sem lastro

Vinte níveis, progressão anual, remuneração inicial ≤50% da final e avaliações periódicas como motor de progressão e bônus soam gerenciais, mas podem desenhar incentivos míopes. Sistemas de desempenho funcionam quando medem resultados de política institucionalizada, têm feedback formativo e avaliação 360 graus, calibragem multiescala e não punem a colaboração. Sem isso, proliferam metas de atividade, corrida por números fáceis e competição disfuncional entre indivíduos e equipes. O risco é converter a avaliação em ferramenta de pressão vertical, substituindo aprendizagem por conformidade. Sem bom desenho de incentivos, o bônus vira loteria; a avaliação, ferramenta de pressão.

Remuneração e benefícios: incerteza travestida de modernização

O pacote de bônus de resultado, vedações e limites a auxílios promete “racionalizar” gastos, mas pode volatilizar a renda de servidores e bagunçar previsibilidade, eixo de qualquer carreira pública. Quando variáveis incertas ocupam o lugar da remuneração base, multiplicam-se contenciosos, dúvidas previdenciárias e incentivos ao curto prazo. Servidores que atendem na ponta, justamente os mais demandados, tendem a desengajar ou a buscar saídas privadas. Com renda instável, quem segura a ponta do serviço? O próximo passo da agenda mostra quem manda.

Governança & digital: condicionalidades como coleira

Amarrar progressões e bônus ao cumprimento de instrumentos de governança e a uma Estratégia Nacional de Governo Digital parece elegante no papel, mas pode virar punição coletiva quando a capacidade institucional é desigual. Em vez de fortalecer resultados, o desenho incentiva o “tick the box”: preenche-se formulário para “destravar” benefícios, enquanto a entrega efetiva fica em segundo plano. Boas práticas de governança e digitalização não se impõem por decreto: exigem capacitação, rotas graduais e aprendizagem organizacional.

E há uma contradição objetiva: a Lei 14.129/2021 (Governo Digital) já institui princípios, regras e instrumentos de transformação digital. Entre os pontos já vigentes:

  • Prestação digital de serviços e processo administrativo eletrônico com assinatura eletrônica válida (arts. 5º a 8º e 11).
  • Plataforma única com autosserviço, Carta de Serviços, Base Nacional de Serviços Públicos, painel de desempenho com tempo médio e satisfação do usuário (arts. 18 a 22 e 24).
  • Interoperabilidade de dados, eliminação de exigências redundantes e vedação de solicitar prova de fato já comprovado; uso do CPF/CNPJ como identificador suficiente (arts. 3º, 24, 38–41 e 28; também art. 10-A da Lei 13.460, alterada).
  • Transparência ativa e dados abertos (arts. 29–35), domicílio eletrônico (arts. 42–43), laboratórios de inovação e redes de conhecimento (arts. 17 e 44–45).
  • Governança, riscos e auditoria interna com foco em resultados e decisão baseada em evidências (arts. 47–49).

Ou seja, o problema não é falta de base legal, é execução: integração entre entes, padronização mínima, infraestrutura, capacitação e fiscalização do cumprimento. Condicionar a carreira do servidor a entregas que dependem de decisões e investimentos da alta gestão e de coordenação federativa inverte a responsabilidade e transforma déficit de implementação em sanção laboral.

Concentração decisória e controle expandido

A combinação de súmula vinculante do TCU, extinção de cargos por ato do Presidente (mediante estudos de “obsolescência”) e novos fundamentos para invalidação judicial de atos administrativos concentra poder e estreita o debate público. Sem garantias de contraditório social e sem salvaguardas federativas, cresce a chance de arbitrariedade e de decisões tomadas longe da realidade das políticas. É a clássica escalada: mais poder no centro, menos escrutínio compartilhado, mais assimetria na ponta. Num desenho assimétrico, implementar vira um pesadelo federativo.

Complexidade de implementação: quando a fórmula única não cabe no Brasil real

Exigir mudanças simultâneas de carreiras, avaliação, remuneração, governança e digital, em milhares de órgãos com capacidades díspares, é um convite à paralisia. Municípios com quadros reduzidos reagem com compliance formal, papéis e checklists, enquanto as entregas essenciais atrasam. A consequência é desigualdade: quem tem estrutura cumpre; quem não tem, paga o preço. E quem sustenta politicamente esse roteiro? É aqui que entram os nomes e a pressão social.

Quem assina o que não aparece

Segundo listas que circulam em grupos de WhatsApp, cerca de 80 deputados teriam assinado a “nova” PEC. A seguir, alguns dos autores, sem protocolo oficial na Câmara até a data de fechamento deste texto:

• Zé Trovão PL/SC


• Julio Lopes PP/RJ


• Evair Vieira de Melo PP/ES


• Gilberto Abramo Republicanos/MG


• Toninho Wandscheer PP/PR


• Amaro Neto Republicanos/ES


• Delegado Caveira PL/PA


• Marangoni União/SP


• Alceu Moreira MDB/RS


• Ely Santos Republicanos/SP


• Gustavo Gayer PL/GO


• Ossesio Silva Republicanos/PE


• Rodrigo Gambale Podemos/SP


• Dilceu Sperafico PP/PR


• Jorge Braz Republicanos/RJ


• Bibo Nunes PL/RS


• Mauricio Neves PP/SP


• Marx Beltrão PP/AL


• Eros Biondini PL/MG


• João Maia PP/RN


• Jorge Goetten Republicanos/SC


• Allan Garcês PP/MA


• Diego Garcia Republicanos/PR


• Pedro Westphalen PP/RS


• Aluisio Mendes Republicanos/MA


• Capitão Alberto Neto PL/AM


• Paulo Azi União/BA


• Pedro Lucas Fernandes União/MA


• Joaquim Passarinho PL/PA


• Emidinho Madeira PL/MG


• Pr. Marco Feliciano PL/SP


• Sargento Fahur PSD/PR


• Franciane Bayer Republicanos/RS


• Gilson Marques Novo/SC


• Jeferson Rodrigues Republicanos/GO


• Mauricio Marcon Podemos/RS


• Luiz Philippe de Orleans e Bragança PL/SP


• Sóstenes Cavalcante PL/RJ


• Henderson Pinto MDB/PA


• Mauricio do Vôlei PL/MG


• Rodrigo da Zaeli PL/MT


• Altineu Côrtes PL/RJ


• Sanderson PL/RS


• Fernando Rodolfo PL/PE


• Carlos Jordy PL/RJ


• Mario Frias PL/SP


• Zucco PL/RS


• Delegado Ramagem PL/RJ


• Coronel Meira PL/PE


• Marcos Pollon PL/MS


• Ribamar Silva PSD/SP


• Caio Vianna PSD/RJ


• Rodrigo Estacho PSD/PR


• Sidney Leite PSD/AM


• Hugo Leal PSD/RJ


• Stefano Aguiar PSD/MG


• Delegada Katarina PSD/SE


• Padovani União/PR


• Pastor Gil PL/MA


• Laura Carneiro PSD/RJ


• Filipe Martins PL/TO


• Doutor Luizinho PP/RJ


• Igor Timo PSD/MG


• Átila Lins PSD/AM


• Saulo Pedroso PSD/SP


• Reinhold Stephanes PSD/PR


• Luiz Gastão PSD/CE


• Luciano Amaral PSD/AL


• Danrlei de Deus Hinterholz PSD/RS


• Rodrigo Valadares União/SE


• Arthur Oliveira Maia União/BA


• Luiz Lima Novo/RJ


• Wellington Roberto PL/PB


• Paulinho da Força Solidaried/SP


• Elmar Nascimento União/BA


• Kim Kataguiri União/SP


• Vitor Lippi PSDB/SP


• Roberto Monteiro Pai PL/RJ


• Luisa Canziani PSD/PR

Nota de transparência: relação repassada e a ser confirmada no momento do registro formal da proposta na Câmara dos Deputados.

Contraponto propositivo: como seria uma reforma que merece esse nome

Uma reforma digna desse nome começa com transparência desde o dia 1: plano de trabalho público, consulta estruturada a estados e municípios e disponibilização contínua de minutas, pareceres e estudos técnicos em avaliação pelos parlamentares. Em desempenho, métricas com lastro: objetivos mensuráveis orientados a resultados de política, feedback contínuo, ciclos de calibragem e incentivos não pecuniários (desenvolvimento, mobilidade, reconhecimento de equipes). Em cultura organizacional, proteção e incentivo à colaboração: freios à competição predatória e estímulos a projetos interinstitucionais. No desenho federativo, normas mínimas e arranjos cooperativos, não centralizações impositivas: pactos por adesão, pilotos, rampas de maturidade e apoio técnico. Em pessoal, remuneração previsível combinada a variáveis responsáveis. Sem esses pilares, a reforma troca eficiência por aparência.

Notas conclusivas

O processo evidenciou o que não deve ser feito: reforma sem texto, sem método e contra o pacto federativo é atalho para o desastre. Não se constrói Estado forte com opacidade procedimental, condicionalidades punitivas e centralização normativa que ignora o Brasil enquanto federação. Convocação: (i) exigir a publicação integral e imediata das proposições legislativas; (ii) cobrar um cronograma, matriz de impactos e controle social; (iii) articular a autonomia federativa. A escolha é simples: ou o serviço público participa da arquitetura, ou será moldado de fora e contra si.

Vamos aceitar uma reforma por vazamento, ou impor uma por evidências e responsabilidade?

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