Casa EconomiaMinuta da PM do Pará prevê folga a policiais por mortes durante operações

Minuta da PM do Pará prevê folga a policiais por mortes durante operações

por Felipe Rabioglio
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Por Fabyo Cruz – Revista Cenarium

Uma minuta de portaria em nome do comandante do 27º Batalhão da Polícia Militar do Pará (PM-PA), major Bruno Gama Pereira, estabelece um ranking de produtividade, de 2 a 100 pontos, que recompensa com folgas os militares por diferentes tipos de ocorrências, entre elas, mortes por intervenção policial durante operações. A CENARIUM teve acesso, com exclusividade, ao documento datado de 16 de julho de 2025. A medida, que ainda não entrou em vigor, fez a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB-PA) classificar a iniciativa como preocupante por abrir espaço para práticas violentas e discriminatórias.

A Portaria 06/2025 prevê a criação de um “Ranking Mensal de Produtividade” dividido em dois eixos: repressivo e preventivo. No eixo repressivo, a pontuação varia de dois pontos por apreensão de munição até 100 pontos para prisões por homicídio e/ou latrocínio. A mesma pontuação é atribuída aos casos de “Milae” – Morte por Intervenção Legal de Agente do Estado, que trata das mortes durante confrontos com policiais militares. No eixo preventivo, constam ações como abordagem a ciclistas (dois pontos) e a motocicletas (dez pontos).

(Imagem: Revista Cenarium)

“Fica estabelecido que a pontuação atribuída às guarnições, no quesito repressivo, será cumulativa, devendo ser somados os pontos relativos a cada ação operacional realizada durante o mesmo turno de serviço, ainda que decorrentes de uma mesma intervenção. Para fins exemplificativos, caso uma guarnição, no mesmo serviço, efetue a prisão de autor de roubo e, concomitantemente, realize a apreensão de arma de fogo, os pontos correspondentes a ambas as ações (70 + 50 pontos) serão integralmente computados para o Ranking Mensal de Produtividade”, diz trecho do documento obtido pela reportagem. Veja o trecho que fala de “premiação”:

(Imagem: Revista Cenarium)

Além de determinar os critérios para a escolha dos chamados “destaques operacionais”, a portaria também concede dispensas por recompensa, ou seja, folgas de até dois dias aos policiais que atingirem determinados resultados, incluindo a prisão de autores de homicídio, de roubos e até ocorrências com resultado letal. O documento prevê, ainda, critérios de desempate com os seguintes parâmetros: existência de termos de correção firmados ou de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC); aplicação de punições disciplinares no período avaliado; e a antiguidade funcional. Veja trecho de documento:

(Imagem: Revista Cenarium)

Reação da OAB-PA

Ao ter ciência do caso, a Procuradoria de Direitos Humanos da OAB-PA, por meio do procurador-geral Paulo André Nassar, reagiu de imediato e encaminhou o Ofício 001/2025 ao Comando-Geral da PM-PA. No documento, a entidade pediu esclarecimentos sobre a validade da portaria, questionou se a prática era restrita ao 27º BPM ou se ocorre em outros batalhões.

A OAB-PA solicitou, ainda, esclarecimentos sobre os critérios utilizados pelo Comando-Geral da PM para autorizar, fiscalizar ou revisar atos normativos expedidos pelos batalhões, com o objetivo de garantir que estejam em conformidade com os princípios legais, disciplinares e constitucionais. O texto reforçou que “tais critérios podem impactar diretamente a atuação policial e a segurança pública”, chamando atenção para os riscos de abusos e violações de direitos humanos.

“Quando nós tomamos conhecimento do documento, ele nos causou estranheza e espanto. Então, imediatamente, questionamos através de um ofício fazendo perguntas para a Polícia Militar”, relatou Adriano Mendes, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA.

Corporação responde à OAB-PA

A Polícia Militar respondeu oficialmente ao pedido da OAB-PA. No documento, a corporação confirmou que a portaria não foi publicada no Diário Oficial e afirmou que o documento é uma minuta que não entrou em vigor. A PM-PA acrescentou que não há normas semelhantes em vigor em outros batalhões e que cabe à Corregedoria-Geral a fiscalização de eventuais abusos. Veja documento:

(Imagem: Revista Cenarium)

Para o advogado Adriano Mendes, a resposta não elimina a gravidade da situação. “Eles não negaram que o documento era falso. Com essa resposta, nos mostraram que existia uma proposta real, mas que nunca se efetivou. Isso nos deixa em estado de alerta, porque é uma iniciativa que pode ter consequências muito graves na atuação da Polícia Militar”, afirmou.

Impacto social e riscos

Segundo Mendes, a preocupação principal recai sobre os possíveis efeitos práticos de um modelo que associa desempenho policial à letalidade. “É preocupante porque esse tipo de medida atinge perfis específicos, como jovens negros de periferia que andam de motocicleta ou bicicleta, e trabalhadores de aplicativo. A gente sabe quem são os alvos mais comuns de abordagens policiais”, destacou.

O presidente da Comissão reforçou que, mesmo sem validade legal, a portaria revela uma concepção de política de segurança pública que merece escrutínio. “Por mais que não tenha sido publicado em Diário Oficial, ainda é preocupante. A proposta existiu, foi elaborada, e isso mostra uma mentalidade que precisa ser acompanhada de perto”, disse.

A Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA afirmou à CENARIUM que seguirá monitorando o caso e insiste na necessidade de transparência e revisão crítica das normas internas da PM-PA, especialmente aquelas que podem legitimar práticas letais. Para a entidade, o episódio expõe a importância da fiscalização externa e da defesa de direitos fundamentais em um Estado marcado por altos índices de violência policial.

Crescimento da letalidade policial

Dados do instituto Fogo Cruzado, que monitora a violência armada em diferentes regiões metropolitanas do País, mostram que o Pará vem registrando um aumento expressivo nos casos de pessoas feridas e mortas em ações policiais nos últimos anos. Em 2023, foram 9 feridos e 27 mortos. No ano seguinte, os números saltaram para 52 feridos e 229 mortos; e, até 6 de outubro de 2025, já foram contabilizados 29 feridos e 138 mortos.

O cenário paraense segue uma tendência semelhante à observada em outros Estados do Brasil. Na Bahia, por exemplo, as mortes em ações policiais cresceram de 79 em 2023 para 514 em 2024, chegando a 451 em 2025. Em Pernambuco, os registros oscilaram entre 16 mortos em 2023, 27 em 2024, e 19 em 2025. Já no Rio de Janeiro, Estado historicamente marcado pela violência policial, os dados apontam 46 mortes em 2023, 302 em 2024 e 259 em 2025.

O Fogo Cruzado é um instituto que utiliza tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada, fortalecendo a democracia por meio da transformação social e da preservação da vida. Com metodologia própria e inovadora, o laboratório de dados da instituição elabora mais de 50 indicadores inéditos sobre violência nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Belém.

‘Gratificação Faroeste’

A preocupação da OAB-PA não é isolada. Segundo Adriano Mendes, a comissão acompanha iniciativas semelhantes em outros Estados, o que, para ele, indica uma tendência nacional de incentivo à letalidade policial sob o pretexto de valorização do desempenho. Um dos casos mais emblemáticos ocorre no Rio de Janeiro, onde a Assembleia Legislativa (Alerj) aprovou, em 23 de setembro deste ano, o Projeto de Lei (PL) 6.027/25, que cria a chamada “gratificação faroeste” – um bônus financeiro a policiais que matarem criminosos durante operações.

Diferente do Pará, onde o “ranking de produtividade” não entrou em vigor, no Rio de Janeiro a proposta foi aprovada pelo Legislativo e aguarda sanção do governador Cláudio Castro (PL). A medida é alvo de críticas de juristas, parlamentares e órgãos de controle. Deputados da oposição articulam o ingresso de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal (STF) caso a lei seja sancionada, alegando que o texto fere princípios constitucionais e compromissos internacionais do Brasil.

O Ministério Público Federal (MPF) também se manifestou, alertando para três vícios de inconstitucionalidade: a criação indevida do benefício por iniciativa parlamentar; o descumprimento de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635, que determinou medidas para conter a letalidade policial no Estado; e a violação do direito fundamental à segurança pública.

Para a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, a gratificação pode estimular o uso excessivo da força, aumentar a letalidade policial e comprometer compromissos já assumidos pelo Estado perante o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Não se trata de um caso isolado do Pará, mas de uma iniciativa que começa a ganhar corpo no País e que precisa ser enfrentada com firmeza”, observou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA, Adriano Mendes.

O que diz a PM-PA

A CENARIUM solicitou um posicionamento sobre o assunto à assessoria de imprensa da PM-PA, mas até o momento não houve resposta. A reportagem segue à disposição para esclarecimentos oficiais.

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