Por Cleber Lourenço
A decisão da Marinha do Brasil de publicar, em seu próprio site oficial, um artigo com críticas e cobranças diretas ao governo provocou reação imediata em Brasília. O texto, divulgado pela Agência Marinha de Notícias e assinado pelo capitão de mar e guerra da reserva, Leonam dos Santos Guimarães, aborda o futuro do Programa Nuclear da Marinha (PNM) e do submarino de propulsão nuclear Álvaro Alberto, mas ultrapassa o tom técnico ao assumir uma postura reivindicatória e de pressão política.
Para membros do governo, a publicação é inapropriada e rompe a linha de neutralidade esperada de um canal institucional das Forças Armadas.
O artigo defende que o PNM tenha previsibilidade orçamentária e um marco legal que o torne política de Estado, blindada de mudanças de governo. O autor aponta um “descompasso estrutural entre a retórica de apoio e a efetividade financeira” do programa e reclama que as oscilações de orçamento comprometem o avanço do projeto. Apesar da relevância do tema, o conteúdo foi publicado em um espaço de comunicação oficial da Marinha, o que, segundo fontes da articulação política, representa uma tentativa de pressão indevida sobre o Executivo.
Auxiliares do Palácio do Planalto afirmam que há canais administrativos apropriados para reivindicações orçamentárias e que o uso de um portal oficial das Forças para expressar descontentamento público mina a confiança e a coordenação entre o Ministério da Defesa e o governo.
O ministro da Defesa, José Múcio (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Artigo no site da Marinha coloca governo sob pressão
A publicação também coloca o ministro José Múcio em posição delicada. Em audiência no Senado no final de setembro, Múcio reconheceu a escassez de recursos e fez um apelo por mais investimentos, mas dentro dos limites institucionais. “Nós estamos passando aí por algumas dificuldades financeiras. Existe uma prioridade de saúde e educação. Sabemos que estamos no fim da fila [de prioridades], mas o trabalho nosso é avisar da precariedade”, disse.
O ministro acrescentou: “Tem submarino que era para estar pronto há 15 anos e ainda não está. A Aeronáutica tem avião que era para estar pronto há 15 anos e ainda não está pronto. Nós não estamos cuidando da nossa manutenção, estamos com problema de combustível. Culpa de quem? De que governo? De nenhum governo. Isso é um descaso que o brasileiro tem com as Forças Armadas, que acha que elas existem só para a guerra”.
Na mesma audiência, Múcio advertiu sobre os riscos do sucateamento das Forças e fez uma defesa enfática da necessidade de planejamento permanente: “A nossa frota vai envelhecendo. Daqui a pouco vai ter marinheiro sem navio, aviador sem avião e soldado do Exército sem equipamento para lutar. Nós precisamos investir nisso pensando no patrimônio, no Brasil. Seja lá quem esteja no governo. As Forças Armadas, seja lá quem esteja no governo, defendem o país, não é a um partido, nem a um líder político.”
A diferença de tom entre as declarações de Múcio e o artigo da Marinha é significativa. Enquanto o ministro tenta construir pontes e negociar espaço orçamentário com discrição, o texto publicado pela Marinha tem efeito oposto: escancara publicamente o desconforto e coloca o governo sob pressão política. Para setores do Planalto, a publicação enfraquece a própria hierarquia e reacende o debate sobre a interferência militar na esfera política.
A iniciativa, embora embalada em linguagem técnica, é vista como um gesto político. Em vez de contribuir para o debate sobre soberania e planejamento de longo prazo, o artigo sinaliza resistência de setores militares a tratar temas estratégicos dentro dos canais democráticos. Ao usar um portal institucional para emitir cobranças públicas, a Marinha transforma uma pauta legítima — a busca por estabilidade e continuidade — em um ato de exposição política que reforça tensões civis-militares no momento em que o governo tenta consolidar a autoridade civil sobre a Defesa.