Casa EconomiaO Círio de Nazaré nas encruzilhadas do Brasil

O Círio de Nazaré nas encruzilhadas do Brasil

por Luiz Antonio Simas
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No mês de outubro, em Belém do Pará / São dias de alegria e muita fé / Começa com intensa romaria matinal / O Círio de Nazaré.

Com esses versos dos compositores Dario Marciano, Aderbal Moreira e Nilo Mendes, a escola de samba Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá) desfilou em 1975 homenageando a grande celebração da fé paraense. O enredo foi reeditado pela Unidos do Viradouro, em 2004. A festa profana enredou-se na festa sagrada e daí surgiu um dos sambas de enredo mais bonitos da história do gênero.

À época, houve polêmica sobre a carnavalização de uma celebração do milagre da fé. Surgiram acusações de que o sagrado seria profanado, como se a sacralização do profano e a profanação do sagrado não fosse mesmo o fundamento das festas populares do Brasil.

O povo conta que o caboclo ribeirinho Plácido, em mil e setecentos, encontrou à beira do igarapé Murucutu, em Belém do Pará, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Plácido recolheu a estátua e para ela montou um altar em casa. A imagem da santa, milagrosamente, reapareceu no mesmo igarapé onde tinha sido encontrada. O fato se repetiu: Plácido levou a santa para casa; a santa retornou à beira d’água.

Plácido concluiu que Nossa Senhora queria ficar à beira do Murucutu, e ali ergueu para ela uma capela. O povo do Pará, sabendo da noticia da volta da imagem, passou a visitar a ermida e reverenciar a Virgem Maria. É esté o mito de origem da festa do Círio de Nazaré, que até hoje ritualiza em cortejo o misterioso retorno da santinha ao local onde fora encontrada.

A festa do Círio, ao longo dos tempos, se transformou em um rito de fé e celebração da vida em comunidade. É talvez a manifestação brasileira mais afeita ao afeto celebrado em festa e recriação, pelo rito, da miudeza provisória da vida. Esse Brasil ritualizado está em risco, acossado pela intolerância dos fundamentalismos que, ao louvar a Deus, celebram a supremacia do mercado, a ascensão do indivíduo como máquina de consumo e a morte dos sentidos coletivos da vida.

Festa é sacrifício (no sentido de transformar um objeto/corpo profano em sagrado, pela entrega/imolação). A dimensão do sacrifício é fundamental no Carnaval e na procissão do Círio de Nazaré; está no giro da baiana que carrega a fantasia pesada e nas mãos calejadas do fiel que segura a corda na procissão para agradecer a graça alcançada.

O Círio e o Carnaval são o que chamo de “festas de doação” – os participantes estão conscientes dos mitos representados e de seus símbolos. Por isso, paradoxalmente, são capazes de imolar a própria consciência e se diluir, como indivíduos, na beleza do corpo coletivo que, rezando como quem samba e sambando como quem reza, se entrega à experiência vigorosa de estar brasileiramente no mundo .

É por isso que em outubro, o mês do Círio de Nazaré, eu que não sei rezar me apego ao samba de enredo cantado no desfile (que também é procissão) e dele faço oração profana, com o desejo de “Feliz Cirio” ao povo paraense: Ó, Virgem Santa / Olhai por nós / Olhai por nós, ó Virgem Santa / Pois precisamos de paz.

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