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Anvisa não cumpre prazo para regulamentar cultivo de cânhamo no Brasil

por Bia Abramo
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Por Manuela Borges

O prazo fixado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definisse regras sobre o cultivo de cânhamo — uma cepa da Cannabis incapaz de produzir efeitos psicoativos — terminou nesta terça-feira, 30 de setembro de 2025, sem que houvesse publicação de nenhuma norma.

Somente às 23h26 da data-limite, a Agência protocolou um ofício junto ao STJ reconhecendo o atraso e solicitando mais 180 dias para concluir o processo regulatório.

Agora, caberá ao STJ decidir se concede ou não a extensão do prazo. Enquanto isso, o país permanece sem regras claras para o plantio do cânhamo, o que mantém travada a produção nacional mantendo o país refém de importação.

A obrigação da regulamentação por parte da União vem do julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 16, em que a Corte decidiu que o cânhamo não pode ser equiparado a uma substância ilícita, por ser incapaz de produzir droga.

O cânhamo é uma variedade da Cannabis sativa com concentração de tetrahidrocanabinol (THC) que — a depender da legislação de cada país — é, em média, inferior a 0,3%. Por apresentar baixo índice do composto responsável pelos efeitos psicoativos da maconha, essa cepa não tem potencial de uso recreativo, sendo destinado apenas a finalidades industriais, médicas e científicas.

Atendendo aos apelos dos pacientes que precisam importar a altos custos a medicação, o STJ determinou em novembro de 2024 que a União, por meio da Anvisa, elaborasse normas em até seis meses, limitando o cultivo a usos farmacêuticos, com rígidos mecanismos de controle e rastreabilidade.

Agência Nacional de Vigilância Sanitária não cumpriu prazo para regulamentar cultivo do cânhamo (Foto: Divulgação)

Argumentos da Anvisa

No pedido de prorrogação feito ao STJ,  pela segunda vez, a Anvisa justificou que não conseguiu cumprir o prazo pela complexidade técnica do tema, por necessitar realizar uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) com ampla consulta pública e da recente troca em sua diretoria no último dia 10 de setembro.

Segundo o novo cronograma apresentado pela Agência de Regulação, as etapas serão as seguintes:


• 30/10/2025: início da consulta pública;


• 31/01/2026: consolidação das contribuições recebidas e elaboração da minuta regulatória;


• 31/03/2026: publicação da norma final.

A Anvisa também sugeriu incluir a pesquisa científica entre os usos regulamentados do cânhamo, mesmo sem essa previsão explícita no acórdão do STJ.

Ministro da Saúde se comprometeu com a pauta

Nesta terça-feira (31), dia do fim do prazo dado ao governo, o presidente da associação de pacientes Santa Cannabis, de Santa Catarina, se reuniu com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Pedro Sabaciauskis destacou que a entidade atende cerca de 8 mil famílias em todo o Brasil, e que muitos recebem o medicamento sem custo.

Presidente da associação de pacientes Santa Cannabis, de Santa Catarina, se reuniu com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha

“As associações de pacientes fazem um trabalho social que nem o estado e nem os laboratórios fazem, atendendo os pacientes que mais precisam deste tratamento. São entidades que não podem ficar de fora desta regulamentação”, destacou o dirigente.

Segundo Sabaciauskis, o ministro se comprometeu em garantir uma regulamentação que inclua estas entidades na norma, inclusive destacando que a Anvisa designou um diretor para abrir o diálogo com as associações nos próximos 6 meses, o especialista em regulação e vigilância sanitária do órgão, Thiago Brasil Silvério.

Para o vice-presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (AMBCANN), o psiquiatra Wilson Lessa, seria importante que o presidente Lula enviasse ao Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) para criar a Agência Brasileira de Cannabis Medicinal e Industrial. “Seria a maior contribuição do executivo para o setor”, avalia Lessa.

A medida, na visão da AMBCANN, iria centralizar a regulação hoje dispersa entre diversos órgãos, como Anvisa, Ministério da Agricultura e Pecuária e Polícia Federal, trazendo maior segurança jurídica, eficiência administrativa e estímulo à pesquisa e inovação.

Pela proposta dos médicos, Agência Brasileira de Cannabis Medicinal e Industrial teria atribuições como:

• regulamentar e fiscalizar o cultivo, produção, processamento, transporte e comercialização de Cannabis medicinal e cânhamo industrial;


• estabelecer padrões de qualidade, segurança e rastreabilidade de produtos;


• fomentar a pesquisa científica e tecnológica;


• apoiar a inclusão de pequenos agricultores e cooperativas no setor;


• garantir o acesso seguro de pacientes a terapias baseadas em evidências científicas.

De acordo com Wilson Lessa, do ponto de vista da saúde pública, a agência poderia ampliar o acesso da população a tratamentos eficazes e de qualidade comprovada. Na área econômica, abriria espaço para a geração de empregos e exportações em setores como farmacêutico, têxtil, cosmético e energético.

“A criação da agência está em consonância com práticas adotadas em países como Canadá, Austrália, Israel e Argentina, que já estruturaram órgãos específicos para o setor. O impacto orçamentário poderia ser mitigado por receitas próprias decorrentes de taxas de licenciamento e fiscalização, assegurando sustentabilidade financeira à autarquia”, defende o vice-presidente da AMBCANN.

Há quase 20 anos, o cultivo da Cannabis, para fins medicinais, já poderia ter sido regulado no país, uma vez que o Decreto 5.912/2006 — que regulamenta a Lei de Drogas 11.343/2006 — diz expressamente que cabe do Ministério da Saúde “regulamentar e autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo determinados, mediante fiscalização”.

Entretanto, a matéria segue parada. Assim como uma legislação via Congresso Nacional. O PL 399/2015, que trata da regulamentação da produção e comercialização de medicamentos à base de Cannabis, aprovado em junho de 2021, está engavetado há mais de quatro anos, sem perspectiva de ir à votação.

Apesar de ter sido aprovado em caráter terminativo na Comissão Especial, ou seja, sem necessidade de ir à votação em plenário, um recurso foi apresentado e precisa ser pautado pela presidência da Câmara para que o tema avance. Algo que até hoje não ocorreu por forte resistência política e ideológica.

Para o advogado Emílio Figueiredo, Fundador da Rede Reforma, o uso e o cultivo da planta para fins medicinais sempre foram uma exceção à proibição, e sua regulamentação ficou pendente por vontade política. “Depois de anos de demanda da sociedade e muitas decisões judicias favoráveis, agora vemos a Anvisa aberta a fazer uma regulamentação coerente com a realidade brasileira”, afirma.

Contexto do uso medicinal

Ainda que o cultivo desse vegetal não seja permitido no Brasil, o uso medicinal da Cannabis com prescrição médica  é regulado pela Anvisa desde 2014.

De acordo com o Anuário Kaya Mind 2024, no ano passado mais de 672 mil pessoas faziam tratamento com derivados da planta no país. Atualmente, há mais de 35 produtos à base de Cannabis disponíveis em farmácias, mas todos dependem de importação do insumo.

O Brasil permanece sem regras claras para o plantio do cânhamo, o que mantém travada a produção nacional

Alguns estados, como São Paulo, já distribuem medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, a inexistência da produção local legalizada ainda cria desigualdades e suspeita nos processos de licitação.

Segundo apuração da Amanda Audi, da Agência Pública, a prefeitura de São Paulo paga até oito vezes o preço de mercado do Canabidiol (CBD), uma das moléculas medicinais da Cannabis. “Na gestão Ricardo Nunes (MDB) cada frasco custou entre R$ 850 e R$ 1,9 mil. Já no mercado, produtos similares são vendidos com preço médio entre R$ 426 e R$ 931”, afirma a reportagem.

Estudos de mercado e consultorias, que analisam o potencial da cadeia produtiva da Cannabis no Brasil, projetam a geração de pelo menos 300 mil empregos diretos a partir da regulamentação da produção para fins medicinais. Entretanto, o conservadorismo e a desinformação ainda impedem o avanço do marco regulatório.

Procurada pela reportagem, a Anvisa informou que, em conjunto com a Advocacia-Geral da União (AGU), formalizou – mais uma vez – o pedido de prorrogação ao STJ.

A agência afirmou que a ampliação do prazo é necessária para aprofundar o diálogo com a sociedade, coletar dados técnicos e elaborar uma norma consistente, capaz de atender tanto às demandas médicas quanto às exigências de segurança e rastreabilidade.

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